"Estado brasileiro declarou guerra ao seu povo"
7 de maio de 2021O Rio de Janeiro foi palco da operação policial mais letal de sua história na última quinta-feira (06/05), com 25 mortos - incluindo um policial - na favela do Jacarezinho, Zona Norte da cidade. A Polícia Civil justificou a ação citando de maneira vaga denúncias referentes ao aliciamento de crianças e adolescentes para a prática de ações criminosas.
Relatos de moradores ouvidos pela Defensoria Pública estadual indicam que ocorreram execuções durante a incursão policial. A corporação nega. Foi a 23ª operação com dez ou mais mortos no Rio desde 1989, primeiro ano de vigência da Constituição Federal, segundo o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF).
Em junho do ano passado, uma liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin proibiu a realização de incursões policiais em favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia. Embora a decisão tenha sido respeitada nos primeiros três meses, passou a ser deliberadamente descumprida posteriormente, com aumento do número de mortes nas operações.
O advogado criminalista Joel Luiz Costa, coordenador do Instituto de Defesa da Pessoa Negra (IDPN), participou no mês passado de uma audiência no STF para debater o cenário da letalidade policial. Criado no Jacarezinho, ele esteve ontem em sua comunidade após a operação. Em entrevista à DW Brasil, diz ter encontrado um cenário de guerra.
"Imagine uma sala que tem um sofá, um espelho e três buracos de tiro na parede. Não tem explicação, não tem lógica e a gente não consegue mensurar o impacto psicológico disso sobre as pessoas que vivem naquela residência e presenciaram aquilo, direta ou indiretamente”, afirma.
Para o advogado, a indefinição legal sobre quais seriam os casos de excepcionalidade citados na decisão do STF dá margem ao descumprimento da determinação legal pelas forças policiais. A situação é agravada, em sua opinião, pelo cenário de desrespeito aos direitos que vigora nas favelas.
"Todas as cláusulas do artigo 5° da Constituição não se fazem valer nesse território, onde o único contato que essa população tem com o Estado é o encontro com a ponta do fuzil de um policial”, critica.
Nesta sexta-feira (07/05), o Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas (ONU), com sede em Genebra, pediu ao Ministério Público do Rio que realize uma investigação independente, completa e imparcial da operação no Jacarezinho, de acordo com as normas internacionais.
DW: Qual foi o cenário com que você se deparou ontem no Jacarezinho?
Joel Luiz Costa: Passando pelo local após o final dos confrontos, vi um cenário de guerra. Havia portas com quarenta, cinquenta buracos de tiro, e não é exagero. Os disparos realmente foram concentrados. Tinha estilhaços de granada e muitos pedaços de concreto, cimento, resíduos que ficam quando uma parede é quebrada. E rios de sangue. Você via rastros de sangue espalhado, deixado por corpos que foram arrastados ou puxados em um lençol. Este era o cenário externo, das vielas e becos.
Nas casas, era uma coisa desesperadora entrar na sala de alguém e ver marcas de tiro dentro daquele ambiente. Não foram disparos de fora para dentro. Imagine uma sala que tem um sofá, um espelho e três buracos de tiro na parede. Não tem explicação, não tem lógica e a gente não consegue mensurar o impacto psicológico disso sobre as pessoas que vivem naquela residência e presenciaram aquilo, direta ou indiretamente.
Houve casos como o de uma senhora de 60, 70 anos, que foi retirada de casa antes de realizarem uma execução ali dentro. Mas, em outro local, o assassinato ocorreu dentro do quarto de uma menina de oito anos, e a mãe dela contou que todos da família presenciaram a morte. Qual é o impacto disso no subconsciente dessas pessoas? Difícil mensurar.
Como advogado, quais arbitrariedades você enxerga na operação e que direitos foram violados?
A gente nunca vai naturalizar eventos desse tipo, e nem aceitar, mas ontem rompeu a barreira do assustador, até para nós que lidamos com segurança pública e defendemos os Direitos Humanos.
A polícia perdeu a vergonha, o mínimo de respeito, e sequer tentou suavizar a barbárie e a violência deles. Para quem é do asfalto e não tem conhecimento da plena vivência do que é existir em um território de favela e periferia, foi demonstrado que naquele território não há leis. Não há Estado democrático de direito, ou Constituição Federal, e nós estamos ao bel-prazer das polícias, que fazem o exercício de poder naquele local.
Fica claro como esse tipo de atuação não é pontual. Não se trata de um caso isolado, mas da realidade das periferias do Rio de Janeiro. Há uma média de três a cinco mortes por operação policial – o que, repito, não iremos naturalizar. Mas foi uma operação mais violenta do que a gente costuma se deparar, chegando a esse absurdo de 24 mortes por agentes do Estado.
É uma prova cabal de que não há direito à vida, inviolabilidade do domicílio e presunção de inocência. Todas as demais cláusulas do artigo 5° da Constituição não se fazem valer nesse território, onde o único contato que essa população tem com o Estado é o encontro com a ponta do fuzil de um policial.
Você participou, em abril, da audiência do STF sobre a redução da letalidade policial. Qual é o quadro que se observa neste momento no Rio, sob a vigência da proibição de operações em favelas pela suprema corte?
Sobretudo nos 90 dias posteriores à liminar do ministro Fachin, tivemos um número bem reduzido de operações, o que poupou muitas vidas. Mas, depois, isso foi se afrouxando. A partir do momento em que a polícia percebeu que não haveria um controle dessa ordem judicial — ou seja, se ela descumprisse, nada ia acontecer, porque o Ministério Público não cumpre seu papel constitucional de fiscal externo dessa atuação —, ela foi esticando a corda e assim continua.
As operações aumentaram, assim como as mortes, gradativamente. E chegamos hoje a um cenário que se assemelha ao que estávamos acostumados antes da ADPF 635, que proibiu operações policias em tempos de pandemia. Mas o fato de ontem está acima de qualquer costume do que é praticado pelas polícias do Rio de Janeiro.
Em outubro do ano passado, o secretário de Polícia Civil do Rio, Allan Turnowski, afirmou que o estado vive uma situação de excepcionalidade permanente, o que justificaria o descumprimento da determinação do STF. Como você vê esse argumento?
O que é a excepcionalidade? O que é a operação policial? A gente deveria ter uma resposta do Estado para essas perguntas, o que não é feito. Essa dubiedade confusa facilita a atuação arbitrária, ilegítima e fora das regras do jogo. Se a gente não sabe o que é, tudo pode ser excepcionalidade.
O que não tem conceito é tudo e nada ao mesmo tempo. Você pode interpretar que uma excepcionalidade só é caracterizada por casos de guerra entre países, ou por quaisquer ameaças de direito, ainda que abstratas. Sem uma definição, realmente tudo é possível. Para a polícia, essa confusão é muito estratégica, porque permite que eles façam seus malabarismos e sua narrativa falaciosa a seu favor.
Você acha que é possível haver um padrão de ação policial mais democrático no delicado contexto de segurança pública do Rio de Janeiro, com as instituições envolvidas nessa atuação hoje
O Brasil não é dado a rompimentos, é um país feito de acordos. Todas as transições históricas do Brasil, como a Independência e a Proclamação da República, deram-se a partir de acordos. Isso é muito problemático, porque dá continuidade a um passado autoritário. Sem romper com essa falsa democracia racial, essa sobreposição de raças em uma supremacia branca com relação à população negra e aos indígenas, eu realmente não consigo visualizar como a gente vai praticar a segurança pública nesse contexto. Uma segurança pública que visa à proteção de alguns não é segurança pública, mas proteção individual, manutenção de privilégios
É preciso pensar que a polícia é para todos e parar de comparar polícia e bandido, como se fossem versões diametralmente opostas. O bandido é chamado assim justamente por não ter que cumprir nenhuma lei. Por isso, ele tem que ser investigado e, se culpado, condenado, bem como neutralizado pelo Estado, seguindo as leis, no sentido de que pare de cometer crimes e não que deixe de viver. A pena de morte não é permitida neste país, salvo em casos de guerra. Ao policial cabe cumprir a lei, no sentido de trazer a todos uma pacificação social para que possamos viver em harmonia, mas dentro dos limites da lei. Se o policial não cumpre a lei, a oposição não é policial contra bandido, mas bandido A contra bandido B.
Tendo sido criado no Jacarezinho, como você se sentiu ontem ao encontrar o cenário que descreveu no início da entrevista?
Foi bem ruim. A morte é inerente à vida do humano, é a única certeza que a gente tem. Qualquer um pode presenciar uma fatalidade, ver uma pessoa morta por um acidente de trânsito, um AVC, ou mesmo uma bala perdida. Duas coisas impactaram muito ontem. Primeiro, a quantidade de mortes: 25 em um período de 24 horas é assustador. O segundo ponto é o cenário do pós-guerra que eu descrevi. Dói na alma visualizar isso no território onde você cresceu e se desenvolveu, na mesma rua onde você toma cerveja com seus amigos, onde você toma banho de mangueira na festa de final de ano, onde botou seu filho para andar de bike.
A dor é ainda maior por saber que isso é a continuação de um projeto longo, histórico, amplo. Só materializa o que a gente pensa: que este país é um território hostil para os nossos, para pessoas pretas, pobres e faveladas. E mostra que o Estado brasileiro declarou uma guerra a seu próprio povo. Não formalmente, porque não se tem a honestidade de dizer isso, mas o Estado declarou guerra informal ao seu povo e executa essa guerra em territórios de favelas e periferias. Sobre as tragédias de 2006, as Mães de Maio dizem que guerra é quando os dois lados se opõem. Quando só um lado mata, e outro lado só morre, não é guerra. Isso é massacre.