Decapitação põe secularismo novamente em debate na França
25 de outubro de 2020Em janeiro de 2015, milhões de pessoas tomaram as ruas de Paris e de outras cidades francesas para denunciar os ataques terroristas na redação do Charlie Hebdo. Uma nação indignada erguia lápis coloridos e faixas , em defesa da livre expressão e do secularismo na França.
Cinco anos depois, e após outro ataque terrorista, há uma sensação de déjà-vu. Os protestos de hoje são menores. Mas a indignação é a mesma, após a brutal decapitação do professor de história Samuel Paty, que exibiu charges do profeta Maomé durante uma aula sobre liberdade de expressão.
Os mesmos cartuns que inspiraram os ataques do Charlie Hebdo - e o esfaqueamento de duas pessoas em Paris no mês passado - estão novamente testando os limites do secularismo francês – a "laïcité”.
Opiniões conflitantes sobre a fé e a liberdade de expressão estão em jogo. E alimentando as tensões, dizem especialistas, um sentimento mais amplo de estigmatização e privação de direitos sentido por muitos franceses muçulmanos, a maior comunidade islâmica da Europa Ocidental.
Agora, como o presidente Emmanuel Macron prometeu uma guerra total contra o islamismo radical, críticos dizem que a forte defesa do laicismo só está exacerbando o problema. Em vez de proporcionar um espaço neutro para o caldeirão de crenças do país, como se pretende, o secularismo - consagrado em uma lei de 1905 que separa a Igreja do Estado - tornou-se um ponto de ebulição.
"Há uma cultura política que tem problemas com o islã", diz o sociólogo Farhad Khosrokhavar, especialista em islamismo radical. "E esta cultura política, a laïcité, é um problema".
O secularismo como religião civil
As autoridades insistem que não há desarmonia entre o islamismo moderado e os valores franceses. Ao invés disso, criticam o comunitarismo, um termo usado na França para sugerir uma visão de futuro da sociedade que muitas vezes está, embora não exclusivamente, ligada ao islamismo conservador. Mais recentemente, Macron substituiu o comunitarismo pelo separatismo em seu dicionário.
Alguns observadores dizem que a mesma visão interna ajudou a alimentar o assassinato do professor. Uma campanha de ódio teria sido lançada por um pai descontente de um aluno. Essa campanha, dizem os investigadores, motivou Abdoullakh Anzorov, um refugiado tchetcheno de 18 anos, a matar Paty.
Em sua luta contra o comunitarismo ao longo dos anos, o governo francês introduziu proibições aos símbolos religiosos nas escolas e prédios públicos e baniu os trajes de banho muçulmanos de corpo inteiro, os burquínis, nas piscinas e praias públicas.
Em setembro, alguns legisladores, inclusive do próprio partido de Macron, abandonaram uma sessão da Assembleia Nacional durante um discurso de uma líder estudantil muçulmana - embora ela não tivesse violado nenhuma lei com o seu hijab.
"A laïcité era uma forma de administrar a relação entre governo e sociedade", diz Khosrokhavar. "Mas tornou-se uma espécie de religião civil, com seus códigos, suas prescrições".
Ao prestar homenagem a Paty em um memorial nacional em Paris na quarta-feira, Macron ofereceu uma defesa emocional dos valores seculares da França. Ele disse que eles proporcionaram o espaço para o pensamento livre e crítico, e até mesmo o direito de fazer piada com uma religião.
"Não desistiremos das charges", prometeu o presidente na cerimônia no pátio da Sorbonne.
O governo Macron respondeu ao assassinato de Paty com dezenas de batidas contra redes islamistas suspeitas no início desta semana, prometeu expulsar estrangeiros radicalizados e dissolver organizações com laços extremistas. Ele também planeja apresentar uma lei no início de dezembro para combater o separatismo, com o extremismo islâmico em sua mira.
Bode expiatório?
Mas o maior partido de oposição da França, a Frente Nacional, de extrema direita, acredita que o governo Macron não foi longe o suficiente.
Chamando o islã radical de "ideologia bélica", a líder da legenda, Marine Le Pen, considerada por enquanto a principal adversária de Macron nas eleições presidenciais de abril de 2022 - apelou para uma "legislação bélica" que corresponda a ela, incluindo uma interrupção imediata na imigração.
Outros, no entanto, temem que as autoridades tenham ido longe demais. Dentre os grupos mais proeminentes que são alvo de dissolução está o Coletivo Contra a Islamofobia na França (CCIF). O Ministro do Interior, Gerald Darmanin, um linha-dura, descreveu a ONG que oferece assistência jurídica aos muçulmanos como uma "ameaça à República".
Darmanin ligou o CCIF à morte de Paty: o pai descontente por trás da campanha de ódio contra o professor havia procurado a ajuda do grupo. O chefe da CCIF, Jawad Bachare, rejeitou as acusações, e vários grupos de direitos humanos protestaram contra a possível dissolução do grupo.
"O governo não foi capaz de proteger seus cidadãos e precisa de um bode expiatório", disse Bachare em uma entrevista no início desta semana. "E ele seria a CCIF".
Alimentar o debate é visto como um plano do governo para renovar o Observatório da Laicidade, um órgão consultivo, para colocá-lo mais "alinhado" à luta contra o separatismo denunciado por Macron. O órgão às vezes foi contra as autoridades estaduais e locais em assuntos como a proibição do burquíni, o que, segundo avaliou, era ilegal.
Observações feitas na terça-feira por Darmanin durante uma entrevista na TV também não ajudaram em nada. Falando à emissora BFM TV, ele sugeriu que um "separatismo" se estenderia até aos supermercados.
"Não critico os consumidores, mas quem vende. Entendo muito bem que a carne halal é vendida em um supermercado, o que eu lamento são os corredores", disse. "Você tem o corredor para os muçulmanos, o corredor kosher e depois todos os outros. Por que corredores específicos?"
Valores em perigo?
Tais movimentos podem repercutir nos eleitores franceses, abalados por uma série de ataques terroristas islâmicos nos últimos anos, que deixaram mais de 250 mortos. Mas alguns podem questionar seu momento, 18 meses antes das eleições presidenciais.
Uma pesquisa realizada na semana passada pela empresa de pesquisa Ifop constatou que uma esmagadora maioria dos entrevistados considerou que os valores seculares da França estão em perigo, e que o islamismo radical está em guerra com o país.
"A 'laïcité' não é contra a religião, mas permite que todos vivam sua religião ou sejam ateus", diz Elisabeth Gandin, que se juntou a milhares em Paris para protestar contra a decapitação do professor. "Não concordo com as charges do Charlie Hebdo, mas estou nas ruas para defender o direito de dizer coisas que alguns podem não gostar".
Uma pesquisa recente do instituto Ifop sugeriu que 40% dos muçulmanos, incluindo mais de três quartos dos menores de 25 anos, colocam suas convicções religiosas à frente do país. Os números foram bem mais altos do que para os não muçulmanos, embora críticos tenham questionado como as perguntas da pesquisa foram feitas.
Os principais líderes muçulmanos expressaram indignação com a morte de Paty. Eles ecoaram argumentos sobre os perigos do islã radical, ao mesmo tempo em que advertiram contra a estigmatização da comunidade muçulmana como um todo.
Khosrokhavar acredita que a interpretação feroz do secularismo na França tem, paradoxalmente, ajudado a fomentar a radicalização. O sociólogo observa que o país se tornou o maior exportador da Europa Ocidental de jihadistas para a Síria, embora outros, como a Alemanha e o Reino Unido, também tenham grandes populações muçulmanas. A visão intolerante sobre os véus islâmicos, afirma ele, ajudou a empurrar algumas mulheres muçulmanas conservadoras para o fundamentalismo.