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Copa da Cultura debate cultura da favela

Mariana Ribeiro7 de junho de 2006

O presidente do grupo Afroreggae, Anderson Sá, e a professora Heloísa Buarque de Hollanda, da UFRJ, debatem em Berlim, no Teatro Hebbel am Ufer, aspectos da produção cultural da favela.

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Alternativas à violência em debateFoto: AP

Anderson Sá tem 27 anos e há dez faz parte da ONG Afroreggae, cujo objetivo é levar jovens aliciados pelo tráfico de drogas nas favelas cariocas à cena cultural, por meio da dança, da música, do teatro e do cinema.

Hoje, Anderson é presidente da organização, além de ser vocalista do grupo de mesmo nome. Ele próprio já participou das atividades criminosas em sua comunidade (Vigário Geral), quando, ainda aos 14 anos e influenciado pelos amigos, resolveu que trabalharia para os traficantes.

Sua maior motivação, como conta para os participantes do debate, em Berlim, não era a remuneração financeira – que enche os olhos dos adolescentes que, no asfalto, precisam lutar para ganhar um salário mínimo. Seu objetivo era poder assistir aos moradores de Vigário Geral. O tráfico de drogas no Rio de Janeiro não é somente uma questão criminal, mas também - ou principalmente - uma questão social.

"Benfeitores sociais"

O papel do traficante dentro das chamadas "comunidades" vai muito além de comercializar entorpecentes. Onde o Estado está ausente e não se tem um sistema social que dê conta de atender às necessidades mais básicas da população, o tráfico aparece como uma espécie de "benfeitor".

Seus dirigentes promovem festas, compram remédios, emprestam dinheiro, financiam velórios para os moradores da favela. Deste modo, preenche-se a lacuna deixada pelo Estado e se legitima um outro "poder", tão forte que é chamado de "paralelo".

Ocupação para os jovens

Um ano depois de ter entrado para a criminalidade, Anderson descobriu o trabalho do grupo Afroreggae e passou a freqüentar as aulas de capoeira oferecidas pela organização, que havia montado uma filial em Vigário Geral. Isso aconteceu logo depois da chacina em que policiais militares mataram 21 moradores da comunidade - entre eles, um tio seu.

A ONG, que surgiu em 1992, oferece uma diversidade de oficinas das quais os moradores da favela podem participar, como um meio de ocupar a juventude com trabalho cultural e distanciá-la da realidade do crime que bate todos os dias à sua porta.

Favela Rising

O atual presidente do Afroreggae aponta a importância do trabalho do grupo a partir do ponto de vista antropológico, no debate com a professora Heloísa Buarque de Hollanda, no Teatro Hebbel am Ufer, em Berlim. Nas aulas de capoeira, por exemplo, os participantes aprendem a se reconhecer como negros e a estudar suas raízes culturais. Um aprendizado que, segundo Anderson, serve de base para a consciência da cidadania.

A história de Anderson pode ser conferida no documentário Favela Rising, dirigido pelos norte-americanos Jeff Zimbalist e Matt Mochary. O filme parte de sua biografia para falar do dia-a-dia na favela e dos mecanismos que regem este espaço geográfico e cultural que se espalha pela paisagem do Rio de Janeiro.

Continue lendo: literatura produzida na favela; novo formato; crônica do gueto.

Abrindo portas

Dentro do contexto de produção cultural dentro da favela, a professora, jornalista e crítica cultural Heloísa Buarque de Hollanda lembrou no debate com o público berlinense um tipo de trabalho que permanece desconhecido, na maior parte das vezes, ofuscado pelas luzes dos holofotes da dança, da música e do teatro: a literatura.

Heloísa Buarque de Hollanda pontua dois marcos importantes no surgimento desta produção literária. O primeiro foi a publicação do volume Cidade Partida, do jornalista Zuenir Ventura, cujo tema era a vida dentro da favela de Vigário Geral.

Armenviertel in Rio de Janeiro Brasilien
Favela carioca: literatura própriaFoto: AP

"A violência e a miséria sempre foram tema de livro, mas, pela primeira vez, a abordagem foi inovadora. Em vez de escrever em estilo jornalístico, Zuenir Ventura deu voz aos próprios moradores da comunidade, para que fizessem seus relatos. Foi a primeira vez que estas vozes tiveram espaço e puderam ser escutadas", diz a professora, citando o exemplo de Flávio Negão, traficante em Vigário Geral.

Literatura produzida na favela

Cidade Partida logo se tornou best-seller e as editoras perceberam que havia uma demanda por este tipo de literatura, um interesse pela vida da favela. Na mesma linha, surge, pouco tempo depois, Carandiru, do médico Dráuzio Varella, sobre o cotidiano do presídio localizado em São Paulo do ponto de vista dos próprios prisioneiros.

Mais uma vez, vozes antes negligenciadas se tornam sucesso nas livrarias, abrindo espaço para a literatura que, além de ser sobre a favela, vem diretamente dela. Neste contexto, é lançado Cidade de Deus, de Paulo Lins. O autor do livro era estudante de literatura e auxiliava uma professora da universidade em seu trabalho antropológico sobre violência em conjuntos habitacionais.

Dos relatórios, nasceu um romance que, pela primeira vez, foi escrito dentro da comunidade, por um de seus membros. A história do conjunto habitacional Cidade de Deus, localizado em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, tornou-se sucesso de público e de crítica e foi parar nas telas do cinema, sob a direção de Fernando Meirelles e Kátia Lund.

A crônica do gueto

Hoje, o que se percebe deste tipo de produção literária, diz Heloísa Buarque de Hollanda, é uma corrente que vai da "crônica" à "literatura de prisão". Mais do que isso, a produção tomou outras formas, adotou um novo formato autoral, cujo exemplo mais importante é o livro Capão Pecado, que conta da vida no Capão Redondo, um dos maiores complexos de favelas de São Paulo, onde o índice de criminalidade é um dos maiores do Brasil.


Do hip hop, a literatura empresta a raiva, a crônica do gueto e o ritmo. Além disso, fica evidenciado nesta produção que o lugar passa a figurar como autor e a violência deixa de ser objeto espetacularizado para ser ambiente.

Como porta-voz da "geração de intelectuais dos anos 60", que se achavam no papel de "salvar" as favelas, Buarque de Hollanda diz-se contente e surpresa com a produção cultural que tem surgido deste espaço de adversidades.