Centenário de Sartre sob o olhar alemão
21 de junho de 2005As relações de Sartre com a Alemanha não são isentas de contradições. Entre 1933 e 1934, o ainda jovem Jean-Paul passou alguns meses estudando em Berlim. Pouco depois da tomada do poder pelos nazistas. E não percebeu nada do terror totalitário que começava. "Este é um dos grandes enigmas de sua biografia", assinala o jornal alemão Rheinischer Merkur.
Confiança no poder da palavra
Mais tarde, depois de ser prisioneiro de guerra, Sartre viria a se tornar uma das vozes mais presentes no pós-guerra europeu. Considerado o "pensador da resistência", foi cultuado tanto dentro quanto fora da Europa. Um intelectual que, segundo o semanário Die Zeit, "tomou a tradição do Iluminismo francês e levantou a voz contra a injustiça e a opressão, confiando apenas no poder da palavra".
Estivesse esta opressão em forma de um autoritarismo colonial francês na Argélia, na política do Oriente Médio, nos dogmas aos quais as revoltas estudantis nas metrópoles européias se opunham ou na postura hegemônica branca européia em relação à África.
"Liberdade sob coação"
Um nome que não só esteve presente "enquanto o existencialismo esteve em moda", comenta o diário suíço Neue Zürcher Zeitung, mas que, "durante quatro décadas, representou toda uma época – o pós-guerra". Um pensador, dramaturgo, ensaísta, crítico literário, analista político, que em 1944 provocou o establishment francês ao dizer que "nunca estivemos tão livres quanto sob a ocupação alemã".
Livres, segundo Sartre, porque submetidos a uma situação extrema de vigilância, ameaça, medo (de tortura, deportação). Uma situação na qual todos os modelos de ordem e orientação perdem a força e na qual o homem está condenado a contar apenas com si próprio.
Como explicar para as novas gerações?
E hoje, por ocasião do centenário do nascimento de Sartre (21/06/1905), pergunta a mídia alemã: o que sobrou de sua herança? Como traduzir Sartre para as novas gerações?
Fazer uso apenas das várias biografias publicadas talvez seja simplificar demais o significado de um pensador que via sua própria vida como experimento fiel ao que teorizava. Negando, com veemência, qualquer espécie de divisória entre o público e o privado. Vide o caráter quase encenado de suas relações (privadas, mas explicitadas ao público) com Simone de Beauvoir.
A grande dificuldade talvez seja separar Sartre da aura de "intelectual engajado", transformada em clichê e há muito ultrapassada. E revisar observações como as do filósofo Jacques Derrida, que perguntava em 1983, três anos após a morte do escritor, "que tipo de sociedade é a nossa, na qual um homem como esse pôde dominar a cena cultural e até se tornar famoso?"
"Schiller: Sartre do século 18"
Com o objetivo de destrinchar "outros Sartres" distantes do clichê que paira sobre a etiqueta de "intelectual engajado", vem sendo observada em Paris, depois da virada do milênio, o que o semanário Die Zeit chama de "sartremania". Um revival da obra do "homem do século 20", antes mesmo de ser um resgate do que foi "o filósofo do século 20".
Na Alemanha, esta tentativa de revisitar a obra sartriana vem encontrando ressonâncias através de uma série de lançamentos no mercado literário. Entre estes, é digna de nota uma recém-publicada biografia de Friedrich Schiller, na qual o autor presta seu tributo ao pensador francês ao subverter a cronologia, chamando o mestre do Classicismo alemão de "o Sartre dos século 18".
Derrida e Foucault
Se o homem Sartre – aquele que em 1964 se recusou a receber o Prêmio Nobel e dez anos depois visitava o terrorista alemão Andreas Baader na prisão – é há muito ignorado pelo establishment de ismos contemporâneos, a obra do autor de A Náusea e precursor, queiramos ou não, do pensamento francês do século 20, ainda persiste atual.
"Sair em busca de uma salvação da filosofia de Sartre não é hoje uma tarefa fácil, principalmente num momento em que o advento do pensamento pós-moderno parecia querer acabar com a filosofia sartriana calcada no sujeito. No entanto, olhando mais detalhadamente, teria sido possível reconhecer linhas de ligação entre Sartre e seus sucessores pós-modernos", observa o Die Zeit.
Além de ver em Derrida sinais das teorias anteriormente plantadas por Sartre, o semanário alemão aponta ainda referências ao pensamento sartriano na obra de Foucault, "cuja esperança de que deveria ser possível esboçar novas formas de subjetividade" já podem ser encontradas nos conceitos de "subjetividade sem identidade" apontados por Sartre.
Decadência no fim
Mesmo que em 1980 seu cadáver tenha sido levado por milhares de pessoas até o cemitério de Montparnasse, em Paris, o homem público Jean-Paul Sartre já havia até então sido enterrado.
Em seus últimos anos de vida, o pensador de outrora não era mais levado a sério. Debilitado em função da dependência de álcool e medicamentos, o homem dos óculos de aros grossos – que se tornaram ícones de uma geração de intelectuais mundo afora – havia se transformado, como conta o pensador palestino-americano Edward Said no belo ensaio Meu Encontro com Sartre, numa espécie de marionete dos que circulavam à sua volta.
No texto que relata um encontro de discussões sobre o Oriente Médio, ocorrido estranhamente no apartamento de Foucault em Paris, Said se depara com um Sartre fragilizado, monitorado politicamente por outros.
Representante de uma época
Existencialista, ateu convicto, cuja obra, como assinala o diário Neue Zürcher Zeitung, tem no conceito de abandono seu cerne. Um abandono que prevê a impossibilidade de encontrar realmente o outro – inclusive qualquer espécie de deus – e que antecipa o fracasso de todas as relações humanas.
"Profético e subversivo, Sartre apoiava-se na sociedade civil, em busca de uma alternativa qualquer, que ainda hoje existe. Este pesquisador da diferença continua sendo um visionário que soube destrinchar a permeabilidade das fronteiras, das quais falava Claude Lévi-Strauss. E que se tornou um pioneiro da interdisciplinaridade, que trouxe frutos à cultura francesa com suas incontáveis expedições para além dos limites estabelecidos dos saberes", conclui o diário Die Welt em artigo sobre o centenário do pensador.
Uma confirmação de que apesar das demolições públicas de suas teorias ao longo das últimas décadas, o legado de Sartre não está esquecido. A razão do enorme fascínio exercido por sua figura, comenta o Neue Zürcher Zeitung, está no fato de que "ele pode ter cometido erros com freqüência, mas fez isso representando toda uma época. Uma época que, nas primeiras décadas após a Segunda Guerra Mundial, ainda queria acreditar na possibilidade de novas reinvenções e na reordenação da vida. Não importa se em questões amorosas ou políticas".