Campo de Gibraltar: ponto de entrada de drogas na Europa
19 de novembro de 2019O tráfico ilegal de drogas cresce em todo o mundo, assim como os grupos de delinquência organizada que as produzem, traficam e vendem. A pressão da demanda do mercado é cada vez mais voraz, da mesma forma que a necessidade desses grupos criminosos de criar novos mercados de consumo.
O sombrio panorama vivido no México, que insistentemente abordo nesta coluna, parece muito distante para os países da Europa, geralmente mais modernos e com instituições mais sólidas. Mas o fato é que esse câncer do crime organizado e das drogas ilegais está infestando os principais portos marítimos europeus. A maioria das nações não está preparada, nem operacional nem legalmente, para enfrentar esse problema, que, se não for abordado a tempo, pode destroçar um país, como sucedeu com o México.
Esta é a primeira de uma série de três colaborações em que abordarei a problemática existente nos portos da Espanha, Holanda e Alemanha, por onde entra no continente a maior parte da cocaína, haxixe e precursores químicos para produzir metanfetaminas. Veremos como os governos desses países estão encarando o problema.
Fui convidada pelo Instituto de Segurança Pública da Catalunha, Espanha, para falar do caso mexicano e suas instituições, derrotadas pelos cartéis de drogas sobretudo devido à corrupção. Tive a oportunidade de conhecer em primeira mão, de autoridades e especialistas da Espanha e Holanda, a complexa problemática sobre esse assunto que está em gestação na Europa.
"Baltasar Garzón galego"
Nos anos 1990, o juiz Antonio Vázquez Taín, conhecido como o "Baltasar Garzón galego" – em referência a outro lendário juiz espanhol –, iniciou sua luta contra o narcotráfico e as organizações criminosas em Campo de Gibraltar. De início, ele tinha poucos recursos econômicos e contava apenas com uns 20 apoiadores.
O que se enfrentava eram não só os grupos de delinquência organizada, mas também uma cultura de ilegalidade fortemente arraigada na sociedade e tolerada pelas instituições. Só quando se alcançaram níveis "insustentáveis" de violência, é que foi registrada uma reação governamental, relata o juiz.
A região de Campo de Gibraltar, em Andaluzia, a parte mais meridional da Península Ibérica, tem quatro municípios onde se concentra o problema do tráfico de drogas: Algeciras, Los Barrios, Línea de la Concepción e San Roque. Apesar de a região ser muito rica em recursos naturais, humanos e culturais, uma série de fatores econômicos, sociais e geográficos permitiu que o poder do narcotráfico se enraizasse especialmente lá.
Uma das razões são os menos de 20 quilômetros de distância que a separam do reino de Marrocos, o principal produtor mundial do opioide haxixe. Oficialmente, o cultivo de cânabis está proibido no país, mas na prática é tolerado, pois milhares de famílias vivem de sua produção.
Segundo Vázquez Taín, "a Espanha ocupa o primeiro lugar nas apreensões de haxixe: quase 50% do total apreendido dessa droga no mundo inteiro. Até hoje Campo de Gibraltar é seu principal ponto de entrada no continente europeu". Outra razão é que nessa comarca se encontra Algeciras, um dos principais portos comerciais da Europa, por número de contêineres e tráfego de mercadorias.
"É principalmente um porto de trânsito, grande número das linhas marítimas que o utilizam como terminal descarregam contêineres a serem novamente carregados em outras naves que viajam por todo o mundo. Muitas dessas que rotas fazem escala em Algeciras provêm de países produtores de cocaína, a qual, junto com o haxixe, é a principal droga que tradicionalmente entra pelo Campo de Gibraltar, com importância crescente."
Segundo o mais recente relatório da Europol, citado pelo juiz espanhol, "o porto de Algeciras, junto aos de Valência, Barcelona, Roterdã e Antuérpia, são as principais rotas de ingresso de cocaína no continente europeu". Justamente a conexão com o porto de Roterdã através do Rio Reno explica o aumento crescente do tráfico de cocaína para a Alemanha.
Um terceiro fator que fomenta a ilegalidade na zona, explica Vázquez Taín, é o alto nível de criminalidade em Línea de la Concepción, com elevados índices de desemprego, e sua contiguidade com Gibraltar. Esse território da Inglaterra é muito importante para a lavagem de dinheiro gerado por atividades criminais, pois "tem uma legislação fiscal muito favorável".
Esta "permite a constituição de sociedades offshore, que não operam no território de Gibraltar, concedendo confidencialidade aos criadores das empresas, além de vantagens fiscais".
Gibraltar não é considerado paraíso fiscal, nem pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) nem pela União Europeia, mas a colaboração com suas autoridades em questões de lavagem de dinheiro e combate ao crime organizado tem sido "muito escassa" – embora nos últimos anos essa tendência venha se revertendo.
Centro do crime organizado
Na baía de Algeciras, a presença da criminalidade organizada chegou a níveis descarados. Como descreve o juiz Vázquez Taín, sua realidade seria muito semelhante à de Culiacán, Sinaloa e outros narcoterritórios do México. "Os narcotraficantes têm residências, armazéns logísticos, embarcadouros. É um território onde a própria autoridade tem dificuldade de entrar."
As lanchas rápidas em que se trafica haxixe chegavam a circular durante o dia, diante dos olhos da população, promovendo um clima de impunidade. Os mitos e fascinação pelo mundo ilegal levam muitos jovens a portarem tatuagens do rosto do traficante colombiano Pablo Escobar, o de uma das lanchas rápidas.
As redes ilegais que operam em Campo de Gibraltar são flexíveis: "Não se pense em organizações totalmente hierarquizadas, fortemente estruturadas. Não se trata das estruturas clássicas de um comando terrorista dos anos 80, estamos falando de organizações extremamente flexíveis, dispostas a se configurarem ou aliarem conforme o carregamento que chegue à zona."
Esse diagnóstico coincide com a forma de operar do Cartel de Sinaloa. A flexibilidade das redes criminosas e sua capacidade de trabalhar com um ou outro grupo em nível internacional se converteu numa de suas principais ferramentas de sucesso, tornando suas operações imprevisíveis e intangíveis.
"Detectamos nos últimos meses o que, no âmbito empresarial, se poderia considerar uma concentração de empresas." Como no modelo mexicano, na Espanha diversas organizações estão se pondo de comum acordo para dividir os gastos e operações necessários a traficar a droga.
Outra característica dos grupos que operam em Campo de Gibraltar é que são apenas intermediários: quem lá opera se dedica unicamente à distribuição, é contratado por organizações maiores, que são as proprietárias da droga.
Em 2018, um comando de 20 pessoas armadas irrompeu num hospital para resgatar um narcotraficante ferido. Esse episódio, a morte de um menino, atropelado no mar por uma das lanchas rápidas marcou o que poderia ser um divisor de águas.
Embora muitos tenham começado a se referir ao fenômeno do tráfico na região como uma "mexicanização", a diferença da realidade no país norte-americano é que a Catalunha pretende reagir ao desafio. Através do fiscal antidroga de Campo de Gibraltar, Alfredo Blanes, a Polícia Nacional e as unidades de investigação criminal e área central de crime organizado da polícia do município de Mozos de Esquadra conseguiram começar a reverter a tendência de impunidade na zona.
Para começar, apreenderam-se todas as lanchas rápidas, confiscaram-se as propriedades vinculadas ao crime organizado e foi realizada a maior operação de apreensão de cocaína da história da Europa. Num contêiner de bananas, chegado ao Porto de Algeciras da Colômbia, encontraram-se 8,4 toneladas da droga, equivalendo a 300 milhões de euros.
A luta travada pelas autoridades espanholas em Campo de Gibraltar não é apenas importante para a sociedade do país, mas também para o futuro de toda a Europa.
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A jornalista e autora Anabel Hernández escreve há anos sobre cartéis de drogas e corrupção no México. Após ameaças de morte, teve que deixar o país, e vive na Europa desde então. Por seu trabalho, recebeu o Prêmio Liberdade de Expressão da DW em 2019, durante o Global Media Forum, em Bonn.
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