México, da violência criminosa ao terrorismo
15 de novembro de 2019A pressão exercida pelo narcotráfico e a corrupção acumulada durante décadas no México – graças à tolerância do então hegemônico Partido Revolucionário Institucional (PRI) e a uma sociedade sem anticorpos, que se habituou à presença de corruptos e traficantes como se fossem parte da paisagem natural – provocou uma fissura profunda que rompe as instituições e o tecido social do país.
Embora o problema mexicano se tenha feito visível para a comunidade internacional pelos altos índices de violência, particularmente nos últimos anos, o que ocorre no México é, na realidade, um longo processo de decomposição política, econômica e social, que deve pelo menos servir de exemplo a outras nações e sociedades.
Nos últimos 18 anos, o México foi fortemente sacudido por episódios análogos aos de países em guerra declarada e que, em qualquer outro contexto, teriam sido reprovados pela comunidade internacional e mobilizado os cidadãos a exigir das autoridades o fim da violência e da perversa impunidade que a acompanha.
A cumplicidade e a inação das autoridades fizeram com que, no contexto da disputa entre os cartéis da droga para intimidar seus rivais e a sociedade, pouco a pouco os limites de sua violência foram se expandindo, até passar a ser terrorismo.
Se fosse possível dizer quando começou a romper-se claramente a fronteira entre uma coisa e outra, eu diria que foi em setembro de 2006, quando, numa discoteca de Uruapan, no estado de Michoacán, no sudoeste do país, apareceram cinco cabeças humanas rodando na pista de dança.
Meios de comunicação nacionais e internacionais noticiaram o selvagem episódio, parte da guerra entre a organização criminosa La Familia Michoacana e o assim chamado Cartel del Milenio. O rosto da barbárie mostrava uma nova faceta para infundir medo, não só ao grupo criminoso rival, mas à sociedade em geral. Nunca antes se vira algo semelhante, ainda que a guerra entre os diversos narcocartéis tenha se iniciado no México por volta de 2002.
Dois anos mais tarde, em 15 de setembro de 2008, em Morelia, na tradicional festa popular pelo início da luta pela independência do México, foram detonadas duas granadas numa praça pública. Três pessoas morreram e mais de 132 ficaram feridas, muitas perdendo diversos membros do corpo.
A violência exercida perante as autoridades e a sociedade, ambas inertes, continuou sua dinâmica, até sua constante presença modificar as dinâmicas sociais no México. Viver com medo passou a ser normal. Mortos e desaparecidos foram engrossando as estatísticas oficiais, passando do extraordinário ao habitual.
Em agosto de 2010, "58 homens e 14 mulheres – a maioria centro-americanos, mas também equatorianos, brasileiros e um índio –, vestidos com bonés de beisebol e roupa desgastada, jaziam em fila, com as mãos atadas. Estavam ensanguentados e espancados com um nível de crueldade similar à exercida pelo ISIS [sigla para 'Estado Islâmico']".
Assim o jornal espanhol El País descrevia o massacre de migrantes perpetrado pelo grupo criminoso Los Zetas, em San Fernando, Tamaulipas, no noroeste do México, a poucos quilômetros da fronteira com os Estados Unidos. Até agora ninguém foi sentenciado por esse crime. Em 2010, o Colégio do México, uma das instituições de pesquisa mais prestigiadas do país, publicou um relatório afirmando que em San Fernando pelo menos 36 policiais trabalhavam para Los Zetas.
O crime organizado mexicano impôs novos parâmetros ao horror. Em 2014, 43 alunos da escola rural Raúl Isidro Burgos, de Ayotzinapa, no estado de Guerrero, desapareceram numa operação conjunta de militares e policiais federais, estatais e municipais. Graças às famílias desses estudantes e seu protesto imediato, o caso manteve em xeque o governo mexicano por pelo menos dois anos.
A história comoveu o mundo, até que a ausência dos jovens filhos de camponeses, idealistas, pobres entre os pobres, virou hábito. Os cidadãos comuns regressaram a suas casas, a seu próprio inferno pessoal, e o governo conseguiu alterar todas as pistas que poderiam ajudar a responsabilizar penalmente os culpados.
Em 17 de outubro de 2019, uma pequena facção do Cartel de Sinaloa tomou as ruas de Culiacán, no estado de Sinaloa, e capturou alguns reféns, assim obrigando o governo a liberar Ovidio Guzmán López, o filho de "El Chapo", que tem ordem de prisão nos EUA por tráfico de drogas e fora capturado com sucesso. O presidente Andrés Manuel López Obrador declarou que o Estado fora vencido e, para "salvar vidas", eles tiveram que soltar Guzmán.
Na época, assinalei que a mostra de fraqueza do governo teria consequências graves para a sociedade mexicana. Quando a autoridade se rendeu, as vidas que disse ter salvado se multiplicaram por muitas outras que deixa declaradamente à mercê do narcotráfico. Assim, 120 milhões de mexicanos permanecem oficialmente sequestrados pelo crime organizado.
As fronteiras do crime organizado no México desapareceram, e a violência se tornou terrorismo. É assim que, em 4 de novembro, houve o indescritível e doloroso episódio da família mórmon LeBarón: três mulheres e seis crianças, entre os quais dois bebês, foram massacrados no norte do país, na divisa entre Sonora e Chihuahua.
Há mais de 20 anos esses estados são dominados pelo crime organizado, por serem um passo estratégico para a travessia de drogas para os Estados Unidos. Outras oito crianças conseguiram escapar do massacre, a maioria correndo sozinha pelo deserto.
A brutal violência cotidiana, valas clandestinas aqui e ali, dezenas de policiais assassinados em um mês, execuções sumárias por parte das autoridades: tudo isso anestesiou a sociedade mexicana e as autoridades.
A tal ponto que, dois dias após os fatos de 4 de novembro, o presidente, cujo hobby é o beisebol, apareceu sorridente, abraçando o jogador mexicano José Urquidy, descrevendo-o como um "tremendo beisebolista". Até então, López Obrador nem fora ao local do inadmissível massacre, nem se reunira com os familiares sobreviventes.
Sem uma estratégia do governo para proteger seus cidadãos e impor ordem e justiça – que é a razão de ser de qualquer governo democrático – e com a sociedade mexicana anestesiada, fica impossível revertermos sozinhos o terrorismo imposto pelo crime organizado,
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A jornalista e autora Anabel Hernández escreve há anos sobre cartéis de drogas e corrupção no México. Após ameaças de morte, teve que deixar o país, e vive na Europa desde então. Por seu trabalho, recebeu o Prêmio Liberdade de Expressão da DW em 2019, durante o Global Media Forum, em Bonn.
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