"Brecht é o único dramaturgo alemão de prestígio internacional"
22 de agosto de 2006DW-WORLD: Que possibilidades existem hoje, 50 anos após a morte de Bertolt Brecht, para um teatro politizado e influente como ele pregava?
Claus Peymann: O teatro sempre adota uma determinada posição ou defende uma certa opinião política. Claro que é difícil comprovar se o teatro – mesmo o de Brecht – modifica diretamente a sociedade, mas que mundo seria esse sem o teatro? Nem é possível imaginar quão ruim ele seria.
Brecht segue a tradição de Schiller e Lessing, ao buscar um teatro iluminista, que denuncia os poderosos e lhes arranca a máscara do rosto. Ele tinha um amor colossal pela justiça e sentia-se a todo momento responsável pelos interesses dos oprimidos. Creio que, no fundo, é essa a posição que defende até hoje qualquer teatro.
De que forma o Berliner Ensemble procura corresponder a essa reivindicação de Brecht sob a sua direção?
Desde sempre tivemos em nosso repertório inúmeras peças decididamente políticas de Brecht. Como, por exemplo, Arturo Ui, a grande parábola sobre Hitler, há 11 anos em cartaz na grandiosa montagem do falecido Heiner Müller.
Mas também as montagens recentes possuem um explosivo potencial social, como A Mãe, baseada em Maxim Gorki, que conta a história de uma mulher que vira revolucionária na Rússia czarista. Também encenamos Mãe Coragem, seu grande drama antibélico, que nos mostra tão penetrantemente o que acontece quando se quer lucrar com a guerra: a mãe coragem perde todos os filhos e afunda na miséria.
O que as peças de Brecht, escritas há mais de meio século, nos têm a dizer hoje?
Muita coisa. Estamos encenando atualmente a Santa Joana dos Matadouros, cuja trama se passa na Chicago nos anos 20. A peça alerta para os perigos da criação de monopólios e é mais atual do que nunca: afinal, a globalização não passa de uma violenta monopolização generalizada, que nos parece amedrontadora e realmente pode se tornar perigosa.
As pessoas se sentem ameaçadas pelas conseqüências da globalização, temem o desemprego em massa e a pobreza. E é exatamente disso que trata Santa Joana: a história se passa em um tempo muito semelhante ao nosso, quando as pessoas acordaram do sonho da era dourada e a crise econômica mundial as levou ao desespero. Nós vivenciamos a atual crise do capitalismo de modo similar. Mas este é só um exemplo de quão perfeitamente as peças de Brecht se encaixam aos dias de hoje.
Ainda como estudante, Bertolt Brecht previra ao seu amor de juventude que um dia viria "logo após Goethe". Será que ele exagerou?
Com certeza, não. O bom e velho Bertolt Brecht previu até com muita precisão. Ele é provavelmente o único poeta e dramaturgo de língua alemã com verdadeiro prestígio internacional. Fato que pudemos constatar ao criar o programa para as comemorações de seu jubileu: há montagens em Joanesburgo e na Cidade do Cabo, em Pequim e Xangai, em Tóquio, na Cidade do México, em Nova York e provavelmente até no Pólo Norte.
Ele é o único dramaturgo alemão realmente encenado em todo o mundo, e nisso está bem à frente de Goethe. Neste quesito, Brecht só pode ser comparável a Molière, Shakespeare, Eurípedes e Goldoni, ou seja, a dramaturgos realmente internacionais. Nós só temos este: Bertolt Brecht.
Mas os jornais alemães constatam, pelo contrário, um cansaço em relação a Brecht em sua terra natal. Como o senhor explicaria isso?
Se os palcos alemães são burros, conservadores ou politicamente medrosos demais para encenar Brecht, isso me estimula ainda mais a fazê-lo no Berliner Ensemble. Mesmo que me acusem de cultura de museu – museus são muito importantes. Veja as grandes exposições de arte dos últimos anos: a mostra sobre Rembrandt ou a exposição do MoMA em Berlim atraíram centenas de milhares justamente por permitir que vivessem o presente através da velha arte.
Brecht também já está morto há 50 anos e pertence assim aos clássicos – que, por sinal, estão todos ameaçados. Mesmo assim, estou absolutamente convencido de que Brecht ainda pode nos ajudar: em nossos medos, mas também em nossas esperanças para o futuro.
Mesmo que o teatro alemão atualmente não o reconheça, estou muito confiante que isso mudará em breve. Um teatro que ampare pessoas em busca de sentido num mundo frio e pragmático voltará a ter importância. O teatro da diversão, o teatro trash, o teatro da destruição, tudo isso já passou. Brecht é a vanguarda.
Segundo uma pesquisa, a maioria dos alemães leu Brecht pela última vez na escola. Só 2% da população lê Brecht por livre e espontânea vontade hoje em dia. Esses números o assustam?
Pelo contrário! Acho esses números até positivos. Só temos que nos livrar da idéia de que a arte é feita para as massas. Ela nunca foi e não há nada de mal nisso. Agora, o fato de Brecht ser um dos dramaturgos mais encenados do mundo e a Ópera dos Três Vinténs, uma das peças mais famosas do planeta, isso eu considero um sucesso absoluto.
Como introduzir Brecht ao público jovem?
Há sempre o perigo de a escola ou professores imbecis bloquearem o acesso a Brecht. Eu mesmo sofri com isso, com a obrigatoriedade de aprender a arte de cor. Mas isso não acontece só com Brecht: muito tempo passou antes que eu pudesse ler Goethe, Schiller e Thomas Mann.
Como sempre haverá bons e maus professores e nós, artistas, não podemos subestimar nosso próprio papel de intermediação: recebemos com frequência a visita de classes escolares no Berliner Ensemble e eles sempre voltam. É importante dar aos jovens a oportunidade de discutir com atores, diretores, dramaturgos, para processar o que viram. A arte é – além do amor – a mais bela experiência que podemos ter. E, como não queremos estragar a experiência de ninguém, precisamos ser muito cuidadosos ao acompanhá-los em seu primeiro encontro com a arte.
De volta às festividades em Berlim: como o Berliner Ensemble vai homenagear seu criador nos 50 anos de sua morte?
Convidamos uma série de montagens internacionais para vir a Berlim. Com muitos acabou não dando certo, pois Brecht é encenado com freqüência ilegalmente. Na África do Sul, por exemplo, muitos grupos não possuem contratos ou os direitos, e é claro que não podemos convidá-los. Mas temos belas montagens, acompanhadas de inúmeras discussões e palestras, da França, Itália, Croácia e até do Japão.
Mas isso é só uma parte. Teremos também, paralelamente ao festival, uma mostra com documentários sobre Brecht e filmagens de seus textos. Também preparamos uma série de shows para salientar o caráter divertido de Brecht, como as gêmeas Kessler ou as Tiger Lillies.
Uma das coisas de que eu mais gosto são as instalações na praça Bertolt Brecht: nossa enorme marionete, que recita passagens do dramaturgo, por exemplo, e as imagens transparentes de Brecht que foram penduradas nas árvores da praça.
Que conselho o senhor dá a jovens diretores que se aventuram a encenar Brecht?
Só posso dizer: coloquem-se a serviço da poesia. Não saiam apenas à procura de sua expressão pessoal! Jovens que mal completaram 20 anos e são, de certa forma, capazes de se articular se consideram automaticamente estrelas. E, passados dois anos, desaparecem dos palcos.
Em vez disso, eles poderiam colocar-se a serviço do teatro, esclarecer, mostrar solidariedade com as pessoas. Brecht é uma excelente escola para o teatro enquanto instituição moral. Não tenho nada contra jovens que encenam A Vida de Galileu ou Mãe Coragem – o que não posso aceitar é a mutilação dos clássicos.
Há alguma passagem de Brecht que o senhor aprecia mais que outras?
Não tenho citações na cabeça. Me apaixono muito mais pelas maravilhosas figuras que Brecht criou, principalmente pelas mulheres sensacionais. São elas que sempre me fascinam, com as quais sonho e que me fazem chorar. Brecht criou algumas das mais belas personagens femininas da história do teatro alemão.