"Ópera" de Brandauer é traição a Brecht
15 de agosto de 2006A própria estréia da Ópera dos Três Vinténs no Admiralspalast de Berlim foi, em si, um pequeno milagre. Até à véspera da apresentação, quando as autoridades da capital finalmente deram o sinal verde, o prédio histórico do início do século 20, reformado às pressas pelo empresário Falk Walter, não era considerado seguro o suficiente para utilização pública.
A mídia acompanhou sedenta o drama tipo "será que vai, será que não vai" em torno da produção mais badalada do ano. No final, a fiação espiando ameaçadora para fora das paredes, manchas de tinta, baldes e montes de entulho vagamente disfarçados indicavam que o prédio – originalmente ringue de patinação e spa de luxo, tornado teatro na década de 1920 – era e continua a ser um canteiro de obras e um projeto inacabado. Bem como o sonho revolucionário de Bertolt Brecht.
Tudo bem, se o cenário está de pé?
O odor de tinta fresca – conhecido por causar leves dores de cabeça ou alucinações, dependendo da idade ou status social de quem o inala – se misturava bem com os perfumes das damas de sociedade berlinenses.
Um cartaz de "toalete", no foyer, ainda apontava para um buraco na parede, coberto por uma simples tábua de madeira. Um pano de fundo metafórico digno do existencial Esperando Godot, de Samuel Beckett.
"Pelo menos o cenário está de pé", comentou o barman antes da segunda apresentação, no sábado (12/08). O que não impediu que a montagem de Klaus Maria Brandauer caísse de nariz no chão.
Leitura pouco excitante
Brandauer – ator e diretor austríaco famoso desde Mephisto – reuniu um elenco estelar. E com uma verba de 3,5 milhões de euros e todo o alarde da mídia antecipando a estréia, o espectador quase tinha que estar convencido de que algo de especial o esperava.
No papel de Mackie Navalha, rei dos malandros, o cantor punk alemão Campino, da banda Die Toten Hosen. Seu "sogro", o rei dos mendigos Mr. Peachum, foi Gottfried John. Familiar aos cinemaníacos de vários papéis em filmes de Rainer Werner Fassbinder, o resto do mundo o conhece como o general russo Arkadii Grigorovitch Ourumov, de 007 contra Golden Eye.
Katrin Sass foi uma das atrizes mais populares da antiga Alemanha Oriental, que viveu um estrondoso retorno em todo o país, após tocante participação na película Adeus, Lênin!. Ela conferiu atrevimento e uma boa dose de comédia-pastelão à sua Mrs. Peachum, uma alcoólica manipuladora.
Porém, a maioria do elenco parecia perdida numa produção excessivamente convencional, carecendo tanto de garra dramática quanto de audácia política. Situando a peça na Londres dos anos 20, como um verdadeiro drama histórico, Brandauer criou uma versão pesadona, antiquada e reverente demais. Incapaz de interessar, e muito menos de provocar.
Revelação austríaca
Numa entrevista o dramaturgo Heiner Müller – considerado o sucessor de Brecht – declarou que "usar Brecht sem criticá-lo é atraiçoá-lo". Transformar a Ópera dos Três Vinténs numa espécie de musical de museu de cera foi uma dessas traições.
A interpretação de Birgit Minichmayr da Polly Peachum acabou se revelando o ponto alto da noite. Nascida na Áustria, ela entrou para a Volksbühne de Berlim em 2004, após ser aclamada no Burgtheater de Viena. Também na presente produção, conseguiu mostrar que é uma das atrizes de língua alemã mais interessantes de nossos dias.
Sua Polly é ao mesmo tempo escrachada e vulnerável, rebelde e amedrontada. A força sobrenatural de sua voz, sutilmente áspera no registro agudo, transformou a Canção da Jenny dos Piratas num momento de beleza arrepiante, espectral.
Varrendo os ricos
O episódio mais contraditório – e mais brechtiano – da noite ocorreu do lado de fora do teatro. Alguns moradores de rua berlinenses vendiam a última edição de seu jornal Strassenfeger (Varredor de ruas), dedicada à nova montagem da Ópera à porta do Admiralspalast.
Um após o outro, os casais ricos e super-ricos paravam diante da entrada do teatro para comprar uma cópia do jornal publicado pela associação dos sem-teto organizados. Afinal, já que os chiques estavam lá para assistir a Brecht, era de bom tom se aproximar das massas. Um espetáculo digno do Discreto charme da burguesia, de Luís Buñuel.
Porém, sorrindo como se não houvesse um amanhã, os compradores eram justamente o tipo de gente que – em condições não teatrais, não brechtianas – olharia para o outro lado. Para a própria sorte, gente que raramente precisa andar de metrô.
Sob os auspícios do Deutsche Bank
Quando Mackie-Campino bradou sua famosa invectiva – "O que é o assalto a um banco comparado à fundação de um banco?" – as palavras estavam fadadas a soar antes petulantes do que subversivas. Especialmente com o presidente do Deutsche Bank, Josef Ackermann, entre os convidados mais VIP da première.
Mais ainda: a Ópera dos Três Vinténs do Admiralspalast foi financiada por seu banco. Uma companhia que fez manchetes há cerca de dois anos, por celebrar o faturamento recorde de 2,5 bilhões de euros demitindo mais de seis mil funcionários, ou 10% de seu quadro.
Bertolt Brecht não era inocente das falcatruas e maracutaias deste mundo. Seu passaporte austríaco lhe permitia sonhar o sonho comunista em Berlim Oriental, enquanto mantinha uma conta de banco na Suíça. Mas, mesmo para ele, esse feliz coletivo artístico reunindo um cantor punk e um grande banqueiro haveria parecido um tique contraditório demais.
Certa vez ele afirmou que sua obra era "o canto do cisne do milênio". Na versão risco-zero de Klaus Maria Brandauer, o canto do cisne de Brecht morreu uma morte apagada e sem ecos.