Brazilcore: estilo da periferia rumo às grandes passarelas
27 de maio de 2024"Quem foi que disse que a bandeira não é nossa?", escreve Abacaxi sob uma de suas fotos no Instagram. Na imagem, é possível ver modelos com camisas, saias e biquínis com as cores do Brasil, agitando a bandeira brasileira e vestindo a coleção Brasil do estilista carioca.
Jeanderson Martins, mais conhecido como Abacaxi, lançou sua marca, a Piña, no meio do mandato de Jair Bolsonaro (2019 - 2022), em um momento em que a bandeira do Brasil era considerada um símbolo político do ex-presidente populista de direita e de seus apoiadores. "Quando o Bolsonaro assumiu o cargo, a gente não via mais a galera vestindo a bandeira do Brasil. Foi isso que ele arrancou da gente", diz Abacaxi em entrevista à DW no Rio de Janeiro. "Dentro da periferia, a gente não via mais, como a gente via antes, a galera vestindo a roupa do Brasil."
É exatamente isso que ele agora quer mudar. Com sua marca, Abacaxi quer recuperar o significado da bandeira brasileira e suas cores como um símbolo de identidade nacional.
Até pouco tempo atrás, a camisa da seleção brasileira era sinônimo de orgulho nacional, acima de preferências partidárias. Até Bolsonaro entrar em cena e instrumentalizar a bandeira para seus próprios fins. Agora, Abacaxi quer levar o visual do Brasil de volta às favelas cariocas.
No mais tardar depois do beijo que Madonna deu em uma bailarina trans em seu show histórico no Rio de Janeiro no início deste mês, ficou claro que a bandeira pertence a todos os brasileiros – não só aos apoiadores conservadores do ex-presidente.
Inspirada por Madonna, até mesmo a Marcha do Orgulho Trans de São Paulo está falando sobre um "renascimento" das cores nacionais e está convocando todos os participantes a usarem a bandeira durante o desfile.
Quem usa uma camiseta do Brasil hoje já não é mais automaticamente categorizado como militante de direita. Mas isso não se deve apenas à Madonna ou ao fato de Bolsonaro não ser mais presidente.
Brazilcore
Muito antes de Madonna, estrelas internacionais, como Anitta, Lady Gaga e as modelos Hailey Bieber e Emily Ratajkowski, já estavam posando com camisetas do Brasil, disseminando a tendência que é conhecida fora do Brasil como "Brazilcore".
Depois que a modelo e influenciadora Hailey Bieber postou uma foto com uma camiseta do Brasil em 2022, mais e mais vídeos de #Brazilcore apareceram no TikTok, nos quais os influenciadores explicam como combinam roupas e adereços do Brasil.
Não demorou muito para que a edição francesa da bíblia da moda Vogue nomeasse o Brazilcore como a "principal tendência" do verão. Assim, um visual que há muito era considerado estética das classes mais baixas se tornava socialmente aceitável.
Para Abacaxi, esse visual é arte. O jovem estilista de 24 anos tem orgulho de sua identidade e de suas origens. Ele diz ser uma "cria da favela". Abacaxi vem de Vila Kennedy, bairro da Zona Oeste do Rio que muitos da elite carioca só conhecem das manchetes. Sua biografia no Instagram diz: "De VK para o mundo".
Ele ganhou o apelido de uma amiga, depois de ter comido tanto abacaxi para curar uma dor de cotovelo, que acabou ganhando uma dor de estômago. Daí vem também o nome de sua marca, Piña, que é como a fruta é chamada em espanhol.
Abacaxi já se interessava por moda na escola. Durante as aulas, ele desenhava roupas, da forma mais discreta possível. "Foi com uns 14 anos que comecei a me interessar pela moda. Eu tinha uma amiga na escola que desenhava muito vestido de noiva. Sempre fui muito agarrada com mulher, uma criança queer. Comecei a desenhar também, comecei a gostar disso. Só que tive que fazer tudo isso meio que escondido, porque era uma criança discriminada e excluída na escola", diz.
Aos 15 anos, Abacaxi começou a frequentar festas funk no subúrbio do Rio. "Lá no baile do viaduto de Madureira, eu me apaixonei por moda, muito. Senti a obrigação de me vestir bem lá. Então, quando eu saí da igreja, com uns 14 anos, eu me aprofundei na moda. Nesse período eu comecei querer fazer os meus próprios looks", lembra o estilista. Ele começou a vender suas roupas em uma loja de roupas de segunda mão em uma favela, a Loja do Abacaxi.
Os visuais para festa logo se transformaram em sua primeira coleção própria. Com o aumento da demanda, sua prima o ajudou nas costuras. Aos 18 anos, Abacaxi começou a trabalhar como estilista para uma grife brasileira. Em 2020, durante a pandemia de covid-19, fundou sua marca, e a Loja do Abacaxi se tornou a Piña.
"Em 2014, eu abri um brechó com as roupinhas que eu fazia. Eu pegava roupas de outros brechós, customizava e botava no meu brechó para vender um pouco mais caro", lembra. "Com o tempo, eu mudei para uma lojinha, e minha prima começou a costurar comigo. Convidei uma blogueira para ser a garota propaganda da marca. Fiz uma primeira coleçãozinha e vendia na loja."
"Coragem de mostrar quem somos"
Abacaxi agora quer fazer mais do que "apenas" reivindicar de volta a bandeira brasileira: ele quer trazer respeito à estética das favelas. "Muitas pessoas acham minha aparência vulgar", diz ele. "É por isso que quero que as pessoas entendam ainda mais que a estética das favelas é arte. Para mim, o que acontece aqui é a maior arte."
"Planos e desejos para o futuro que eu tenho é fazer muita Fashion Week com a Piña, levando a estética para o mundo, porque muitos olham e falam que é vulgar. Mas muitos esquecem que a favela é onde existe a maior das artes", afirma. "Então, eu quero que a Piña atinja bastante espaço no mundo da moda, que a galera comece a respeitar e ver que de fato, estética de periferia é arte."
Os desejos de Abacaxi vão se tornando mais reais a cada dia. Famosos brasileiros como a cantora Anitta, a coreógrafa Arielle Macedo e a rapper Mc Soffia já estão usando suas criações. Abacaxi agora pode viver de seu trabalho. Mas para ele, o Brazilcore é mais do que apenas uma tendência da moda. "A estética Brasil para mim é vontade e coragem de mostrar quem somos e de onde somos."