Bibliothek: Feliz aniversário atrasado, Herr Kafka
4 de julho de 2017Nesta segunda-feira (03/07), faria aniversário aquele que pode ser chamado de o mais influente escritor de língua alemã do século 20: Franz Kafka. Também é certo que tal escolha pode ser questionada. E ele sabia que uma decisão dessas passaria por alguns canais burocráticos insondáveis. Quem toma as decisões finais por aqui?
Kafka era um rapaz franzino que sequer nasceu no país que deu nome à língua, a Alemanha e o alemão. Nascido em Praga em 1883, capital do Reino da Boêmia e então parte do Império Austro-Húngaro, o que era o senhor Kafka? Que nacionalidade tinha, ou tem em nossas mentes hoje? Talvez a ele se aplique de verdade o que disse Fernando Pessoa, seu contemporâneo, que sua pátria era sua língua?
Era um funcionário da minoria judia, que escrevia seus contos e romances em forma de parábola. Formado em Direito, trabalhava para um companhia de seguros. Escrevia quando podia. Ao morrer, em decorrência da tuberculose com apenas 40 anos de idade, é já lendária a história de que pediu ao amigo Max Brod que queimasse seus romances, que considerava inacabados. O amigo não acatou seu desejo, e a literatura jamais foi exatamente a mesma.
Seu nome virou adjetivo. Hoje chamamos certos trabalhos ou mesmo situações de kafkianas. Quando o li pela primeira vez ainda adolescente, comecei por aquele trabalho mais famoso, que se tornou quase uma parábola moderna, como se fosse parte do nosso folclore moderno: A Metamorfose. Que experiência desorientadora.
Apenas lendo este e outros dos seus textos mais curtos, comecei a perceber o que queriam dizer com aquelas histórias e opiniões apaixonadas sobre a escrita do senhor Kafka. A atmosfera de sonho. Ou de pesadelo, é claro. A forma como descrevia o que parecia absurdo com a falta de espanto de quem sabe que nada, nessa vida, é realmente mais absurdo do que a própria vida. Estarmos aqui. Para quê? A serviço de quem? E governados por quais leis?
Kafka seria um escritor de histórias de terror se não as contasse com aquela linguagem sem ênfase, sem espanto, como quem descreve seu café da manhã. Um homem acorda em sua cama no corpo de um inseto? Acontece. Um homem é preso em sua casa ao acordar pela manhã sem saber exatamente o que havia feito de errado? Acontece. Estes dois textos sempre me deram a sensação de que para Kafka o pesadelo começava ao acordarmos. Ainda que não se tenha tido sonhos tranquilos durante a noite. Pesadelos, dormindo ou acordado.
É impossível imaginar o que teria sido da literatura moderna se não nos tivessem chegado esses livros. Quantos escritores permanecem tão atuais quanto o senhor Kafka? O menos datado de todos os modernos. Sua linguagem cristalina, suas histórias tenebrosas. Poucos escritores parecem seguir descrevendo tão bem nossa existência moderna. Ou talvez a existência em qualquer tempo.
Ontem seria aniversário deste homem que morreu aos 40 anos. Hoje completo 40 anos eu próprio. Quanto mudou desde sua morte nesta nossa existência sem respostas? Talvez nada. Posso apenas agradecer ao senhor Kafka por ter feito tanto por nós em seus 40 anos. Não nos deu respostas. Talvez tenha ensinado que não faz sentido fazer certas perguntas.
Na coluna Bibliothek, publicada às terças-feiras, o escritor Ricardo Domeneck discute a produção literária em língua alemã, fala sobre livros recentes e antigos, faz recomendações de leitura e, de vez em quando, algumas incursões à relação literária entre o alemão e o português. A coluna Bibliothek sucede o Blog Contra a Capa.