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Beijo gay em novela reflete discussão crescente no Brasil

Fernando Caulyt3 de fevereiro de 2014

Mais do que quebra de tabu, cena de "Amor à Vida" responde a debate hoje presente no país. Para analistas, exibição era inevitável diante da mudança, ainda que lenta, da percepção sobre homossexualidade na sociedade.

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Foto: Globo/Estevam Avellar

A cena durou poucos segundos, mas o selinho entre os personagens Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso) no último capítulo de Amor à Vida – o primeiro beijo gay masculino numa novela da Rede Globo – foi suficiente para pôr o tema em discussão entre os brasileiros. O hashtag #BeijaFelixENiko ficou como um dos assuntos mais comentados no Twitter por mais de seis horas.

A cena de afeto entre dois homens, em horário nobre e na emissora de maior audiência da televisão brasileira, quebrou um tabu da própria Globo, que relutava em mostrar beijos entre homossexuais. A imagem, porém, representa mais do que um rompimento de um padrão na TV – ela reflete um debate hoje presente na sociedade brasileira.

“Quando uma emissora como a Globo, que tem alcance e influência em todo o país, coloca uma temática como essa, faz com que todos os grupos, mesmo contra ou a favor, discutam o assunto”, afirma João Clemente de Souza Neto, sociólogo da Universidade Mackenzie. “É uma quebra de tabu, e acho que foi um avanço neste momento de se construir e avançar na cultura dos direitos humanos.”

A demora na exibição de uma cena do tipo se explica. Segundo estudo da USP de 2009 – o primeiro quantitativo sobre o tema – 99% da população brasileira possui algum grau de preconceito contra gays. A pesquisa distingue preconceito de homofobia e, nesse sentido, diz que um quarto da população é homofóbica. Entre os homens a cifra é ainda maior: um em cada três apresenta caráter homofóbico.

Aceitação maior

Mas para o presidente da Associação de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Carlos Magno Fonseca, exibir o beijo acabou se tornando inevitável, mesmo com a possibilidade de rejeição por parte dos telespectadores. A expectativa da opinião pública, explica, era grande, e o casal homossexual da trama foi aos poucos ganhando apoio popular.

“Sem dúvida a emissora sofria também da pressão dos setores religioso e conservador, que não querem que se avance com os direitos LGBT no país. Sem dúvida, se não houvesse adesão da população, não haveria o beijo. Mas houve uma questão cultural que acaba mostrando que casais homossexuais existem na vida real, se amam e constroem família”, completa Fonseca.

Um estudo recente do americano Pew Research Center, feito a partir da pergunta “A sociedade deveria aceitar a homossexualidade?”, concluiu que a aceitação aos gays é menos difundida em países em que a religião ocupa um papel mais central nas vidas das pessoas, como o Brasil.

A aceitação no país, no entanto, vem evoluindo. Em 1993, pesquisas de opinião pública estimavam que não mais que 7% dos brasileiros eram favoráveis à união homoafetiva. Hoje, segundo sondagem de 2013 feita pela Confederação Nacional dos Transportes (CNT) em parceria com a MDA Pesquisas, cerca de 40% apoiam.

Em nota, a Globo disse que “toda cena de novela é consequência da história, responde a uma necessidade dramatúrgica e reflete o momento da sociedade”. E “o beijo entre Félix e Niko [...] foi, portanto, o desdobramento dramatúrgico natural dessa trama."

Erster Kuss zwischen zwei Männern im Telenovela Amor à Vida
Niko (Thiago Fragoso) e Félix (Mateus Solano) em cena de "Amor à Vida"Foto: Globo/Alex Carvalho

"O impacto desta discussão é enorme e gera a médio prazo um debate que acho extremamente bem-vindo", opina a antropóloga da PUC-SP Silvia Borelli. "A cena do beijo provoca uma discussão e reflexão dentro das famílias e escolas sobre os homossexuais."

Primeiro beijo em 1990

Apesar da polêmica, o primeiro beijo entre personagens homens ocorreu na minissérie Mãe de Santo, da extinta TV Manchete, em 1990. O beijo, muito tímido e em contraluz, não causou grande repercussão na mídia brasileira, como acontece atualmente com a cena de Amor à Vida.

No último domingo (02/02), na festa de lançamento da novela de sua autoria Em Família – que sucede a Amor à Vida – Manoel Carlos disse que muitos autores, como ele, já tinham a intenção de usar uma cena como a de Félix e Niko em suas tramas. “Todos os autores já tentaram botar o beijo [gay]. A Globo é que não punha no ar. O problema é dela mesma”, disse à imprensa brasileira.

E realmente não foi a primeira vez que um autor de novela da Rede Globo escreveu uma cena de beijo entre dois personagens. Em 2005, decidiu-se não levar ao ar um beijo entre os personagens interpretados pelos atores Bruno Gagliasso e Erom Cordeiro na novela América, de Glória Perez. O veto causou reações de revolta de muitas organizações de defesa dos direitos dos homossexuais.

“A religião tem uma força até um determinado momento. Eu não vejo agora a Rede Globo mais ou menos conservadora. Foi o Ibope, questões mercadológicas, sociais e pressões de grupos que levaram a isso", afirmou João Clemente. "Acho que as relações sociais neste momento pediam isso, e a Globo está dentro dela e, de uma forma ou de outra, tinha que ceder – o que outras emissoras também iriam fazer”, completa o sociólogo do Mackenzie.

O último capítulo da trama de Walcyr Carrasco marcou 48 pontos de audiência e igualou o recorde alcançado em 27 de janeiro, quando Aline esfaqueou Ninho. Cada ponto representa 65 mil televisores ligados na Grande São Paulo. De acordo com dados da Rede Globo, a audiência média geral da novela foi de 36 pontos.

Entre mulheres, o primeiro beijo na televisão brasileira foi transmitido pela extinta TV Tupi, no teleteatro A Calúnia, em 1964, entre Vida Alves e Geórgia Gomide. Já em 2011, foi a vez de o SBT mostrar troca de carícias e um beijo – de 40 segundos – entre as personagens de Luciana Vendramini e Giselle Tigre na novela Amor e Revolução. No entanto, a emissora de Silvio Santos vetou um beijo entre os personagens de Lui Mendes e Carlos Artur Thiré na mesma trama.