As faces do Brasil: em cor ou preto-e-branco
10 de julho de 2005A mostra Faces do Brasil – Fotografias Atuais de Artistas Brasileiros, que o Museu Ludwig de Koblenz traz ao público alemão, passeia por vários Brasis: o da violência urbana, o dos índios na Amazônia, o da religiosidade quase arcaica, o das paisagens naturais, florestas desmatadas, travestis, carnaval, procissões e, last but not least, o dos abismos entre as classes sociais.
São cerca de 200 trabalhos de mais de 30 profissionais. Esses fotógrafos, pode se ler num quadro explicativo, são uma espécie de “sismógrafos em busca de registros do Brasil de hoje”. Dessa busca faz parte desde a série de portraits em preto-e-branco feita por Carolina Andrade, passando pelo trabalho de Karime Xavier, que flerta com a herança da pop art, até chegar às viagens estéticas de Rosa de Luca, com suas imagens de nadadores “azuis” e quase irreais. Sem esquecer os “riscos” simbólicos de Nario Barbosa sobre idosos em cadeiras de rodas, enquanto Renata Resco “deteriora”, suja e envelhece convencionais fotos de família.
Sem título nem data
A peculiaridade desses trabalhos – alerta um dos quadros informativos espalhados pela mostra – é a falta de título e data. “Apenas alguns fotógrafos se adaptaram ao costume europeu. O museu deu então um título para cada série que não continha nome”, pode se ler em seguida. E exatamente através dessa forma "ordenada para o olhar europeu" é possível entrar em contato com os Registros do Crime, todos em cor. Documentos tanto do trabalho infantil quanto da violência a que são submetidas crianças no Brasil.
Diante de tais imagens, uma visitante se diz “chocada” com o que vê. Ao perceber uma brasileira a seu lado, aposta ser "terrível ter que voltar para um lugar assim". Provocando inevitavelmente, neste momento, a dúvida se o olhar eurocêntrico vai algum dia conseguir se desviar do próprio umbigo e, principalmente, se libertar das próprias referências. Deixando no ar se é realmente possível traduzir o Brasil captado, por exemplo, pelas lentes de João Senechal: o do barbeiro no interior do Paraná, do pescador na Bahia, dos vendedores ambulantes.
Plataforma para artistas brasileiros
De uma forma ou de outra, não deixa de ser bem-vinda a possibilidade de abrir mais portas na Europa não apenas para a fotografia, mas para a arte contemporânea brasileira em geral. A cooperação com a Fundação Ludwig, que mantém onze museus espalhados pelo mundo, deverá levar estas Faces do Brasil para Budapeste. “Em outubro vamos negociar com Pequim”, conta a diretora do Museu em Koblenz, Beate Reifenscheid, à DW-WORLD.
Mais do que simples exposições, diz Reifenscheid, o que interessa “é a idéia que está por trás disso: o The Brazilian Art Project, que visa a criação de uma plataforma e um fórum de intercâmbio para artistas brasileiros”. Através de uma parceria estabelecida pelo projeto, sediado em Londrina, a mostra Faces do Brasil segue para o Museu de Arte Contemporânea de Belmont, perto de Lausanne, na Suíça, e provavelmente em seguida para Barcelona e Lyon.
No segundo semestre deste ano, o Museu Ludwig de Koblenz deverá dar continuidade à cooperação, expondo pintura, escultura, instalações e trabalhos em vídeo de artistas brasileiros. “Os nomes ainda não estão cem por cento definidos, mas estamos certos de que queremos trazer trabalhos de Caetano Dias, Angelo Milani, Rosângela Rennó e Rosana Ricalde, entre outros. Serão 25 participantes e para a seleção contamos com a colaboração de 15 curadores em todo o Brasil", conta Michael Juncker, o articulador do The Brazilian Art Project, em entrevista à DW-WORLD.
Almanaque, arquivo, prêmios e bolsas
Entre as metas do projeto está a criação de um almanaque de artistas brasileiros, cujas edições devem ser distribuídas entre os principais museus e galerias do mundo; um arquivo de obras, que pode ser consultado tanto diretamente quanto pela internet, e ainda três premiações anuais.
Entre estas uma bolsa destinada a artistas brasileiros que tenham interesse em passar uma temporada na Europa. “Em maio de 2006, vamos conceder uma bolsa de três meses na Suíça. Há também a possibilidade de uma outra da Fundação Ludwig, para uma estadia em Aachen, na Alemanha, mas ainda não fechamos a proposta", diz Juncker.
Possibilidades de efeturar diálogos que “sensibilizem” interlocutores do outro lado do mundo, quem sabe tornando desnecessários avisos como o encontrado na entrada da sala onde são projetadas as fotografias feitas por Marlene Bergamo: “Comunicamos explicitamente que as imagens que se seguem podem chocar crianças ou pessoas sensíveis”.
Chocando pessoas sensíveis?
O que, segundo as indicações do museu, poderia chocar “pessoas sensíveis”, é a alternância criada pela fotógrafa de diferentes rostos do Brasil: o das vítimas da violência, dos cadáveres expostos, massacrados, ensangüentados e abandonados, ao lado daquele dos símbolos de luxo e riqueza, das festas dos magnatas e políticos, de jóias e sorrisos falsos. O Brasil mostrando sua face mais verdadeira e mais cruel. Coluna social versus Instituto Médico Legal. A indiferença causada pela violência cotidiana, fazendo com que o "presunto" estirado no chão não tire mais o apetite dos freqüentadores do bar ao lado.
E do lado de fora do Museu Ludwig, na pacata Koblenz, numa tarde de sábado, ecoava a música barroca de Henry Purcell. O som de King Arthur frente aos cadáveres de miseráveis e aos milionários de Marlene Bergamo imprimindo ao momento algo de Pasolini, que soube magistralmente construir a tragédia do marginalizado Accattone através do sublime presente em Bach. E bem ao lado, nos outros trabalhos expostos no museu, filhos mortos estirados como o de Mamma Roma e o desprezo pela dignidade humana equivalente à crueldade explícita em Saló. Faces pasolinianas de um Brasil em preto-e-branco e em cor. Para quem quiser ver. E enxergar.