Apesar das conquistas, gays ainda são vítimas de violência
14 de março de 2014As paredes do Grupo Diversidade Niterói, que antes abrigavam poemas de amor, foram tomadas por insultos homofóbicos em 18 de fevereiro. A sede da ONG, no estado do Rio de Janeiro, foi invadida e completamente depredada em um dos inúmeros ataques contra a comunidade LGBT registrados no início do ano.
Plantas retiradas dos vasos, terra jogada no chão, pó de café espalhado pelo banheiro, móveis quebrados, arquivos e documentos roubados. O trabalho quase meticuloso de destruição reflete o tamanho do ódio. Só em janeiro, foram 46 homicídios de homossexuais no país, segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB) – quase o dobro do número registrado no mesmo período do ano passado.
Até o fim de fevereiro, a ONG contabilizou 70 mortes, quantidade maior que a apontada nos dois anos anteriores. Luiz Mott, um dos fundadores do GGB, alerta, entretanto, que é difícil saber se há uma tendência de aumento: "Os assassinatos de LGBT no Brasil são imprevisíveis, não há regularidade nas taxas." Além disso, Mott lembra que a maioria dos casos não é registrada e permanece desconhecida.
No Rio e em São Paulo, especialistas acreditam que há uma "onda de violência". Para o responsável pela Coordenação de Políticas para LGBT da Prefeitura de São Paulo, Alessandro Melchior, há um "recrudescimento dos discursos de ódio na sociedade". "Isso obviamente se reflete no aumento de casos de violência porque os grupos homofóbicos ficam mais encorajados a cometer atrocidades", argumenta.
Outra possível causa do aumento é uma maior mobilização da comunidade LGBT, que se esforça em denunciar a violência e registrar os casos. A maior visibilidade, entretanto, pode ter um preço alto.
Especialistas acreditam que as conquistas da comunidade LGBT também desencadeiam reações violentas. Isto é, ao mesmo tempo em que há avanços – como a exibição do primeiro beijo gay entre homens numa novela da Rede Globo, no fim de janeiro – ganha força também uma "onda conservadora".
Medo na Augusta
Em 26 de janeiro, o auxiliar administrativo Bruno Borges de Oliveira, de 18 anos, foi espancado até a morte em São Paulo. Ele foi morto em uma região próxima às ruas Frei Caneca e Augusta, tradicionalmente frequentadas pela comunidade gay. A polícia prendeu seis jovens, que confessaram o crime. Para frequentadores da região, os ataques estão mais comuns.
"Nunca tinha me acontecido nada, mas em 15 dias fui atacado duas vezes. Em uma, estava andando na Augusta e um homem simplesmente me deu um soco. Não tentou roubar nada. Ficou muito claro que foi homofobia", diz Luis, de 21 anos, que trabalha como maquiador em um shopping do local.
Hoje Luis tira a maquiagem antes de voltar para casa, com medo de agressões. "Estou acuado, só ando em grupo. Nem em táxi dá para confiar", afirma.
A sensação de insegurança é generalizada. Em um dos bares LGBT na Augusta, dois gays comentam que "a situação piorou depois da morte do Kaique" – o adolescente foi encontrado morto em 11 de janeiro sob o Viaduto Nove de Julho. O caso chocou a comunidade LGBT e foi registrado como suicídio.
"Depois dos ataques eu deixei de ir para as baladas na Augusta. Sinto que a noite aqui está mais sombria", conta Pedro, de 25 anos. Grande parte dos gays que frequenta esses espaços adotou medidas de segurança como andar em grupo e se locomover em táxi, ainda que para distâncias curtas. "O bom da Augusta era descer a rua caminhando, entrando em bares, vendo o movimento. Os ataques mudaram essa dinâmica", diz Pedro.
Para Leonardo, de 20 anos, que trabalha como cozinheiro em um dos estabelecimentos comerciais da Augusta, o número de clientes caiu. Abílio Junior, um dos sócios da Hamburgueria 162, restaurante localizado na rua, acredita que os ataques prejudicam o comércio. "Os gays gastam bem, são ótimos clientes. O movimento caiu, não sei se devido aos ataques, mas claro que isso atrapalha", argumenta.
Juliano, de 26 anos, foi uma das vítimas atacadas na Augusta no início do ano, em fevereiro. O mestrando de biomedicina subia a rua em direção ao metrô por volta das 22 horas, quando um homem lhe deu uma rasteira.
Ele perguntou: "Por que você fez isso?", ao que o agressor respondeu com insultos. Antes de retomar o caminho, Juliano disse: "Tenho medo do que você pode fazer com outras pessoas mais tarde". Segundo o estudante, o homem o atacou pelas costas e o derrubou no chão logo depois.
Duas semanas após o incidente, o braço direito segue dolorido, prejudicando seu trabalho como pesquisador no laboratório. "Não deu para ele fazer muito estrago, porque tinha muita gente na rua", diz Juliano, que escapou com hematomas e escoriações.
Apesar do movimento, o estudante conta que as pessoas não tentaram impedir a agressão. "Gritei por socorro, mas ninguém fez nada. Ele era o dobro do meu tamanho", afirma Juliano, um jovem miúdo, de aparência frágil.
Arrastada pela rua
De fato, parece haver uma preferência por alvos de pouca força física. Vanessa, de 24 anos, tem 1,61 metro de altura e pesa 50 quilos. A namorada dela, Leidiane, de 31 anos, mede 1,53 metros e tem 45 quilos. Elas foram atacadas por dois homens enquanto saíam de um bloco de Carnaval em 16 de fevereiro, por volta das 21 horas, no centro do Rio.
Ainda sob o choque do crime, Vanessa postou no Facebook: "O meu corpo é pequeno, não precisa de muito chute pra deixar ele completamente tremido". Segundo Leidiane, um dos homens derrubou-a no chão e se juntou ao outro na agressão à Vanessa. "Ela tem um perfil mais andrógeno e acredito que por isso tenham focado nela", opina.
Os homens arrastaram Vanessa pela rua de pedra portuguesa, segurando-a pela calcinha – que acabou rasgada – e pelo sutiã, deixando-a com os seios à mostra. "Pela forma que me bateram, eu acho que queriam fazer um 'estupro corretivo'", conta Vanessa, com muita dificuldade.
Leidiane tentou tirar a companheira das mãos dos agressores, mas não conseguiu. "Eles estavam arrastando a Vanessa para uma rua deserta e escura. Fiquei desesperada e ninguém fazia nada. Tinha muita gente perto, até um segurança de um teatro", lembra Leidiane.
Finalmente, um dos transeuntes ajudou as jovens e elas conseguiram escapar. Além das lembranças ruins, Leidiane teve o pé torcido, hematomas e escoriações. "A Vanessa ficou pior porque levou chutes e socos", diz, condoída, pousando a mão nos machucados da namorada, contando as feridas.
Trauma
As duas ainda não foram capazes de retornar ao local do ataque. O mesmo ocorre com Juliano, que evita ir à Augusta. Assim como Leidiane e Vanessa, o estudante diz que não vai mudar a sua vida pela violência sofrida. "A gente não pode responder ao agressor com medo", argumenta.
Mas o trauma é difícil de superar. André, de 29 anos, foi atacado perto de sua casa, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo, em 2012. Mais de um ano depois, o estudante de Direito ainda sofre com as consequências do crime. "Por muito tempo eu não consegui passar lá. Dava sempre uma volta para poder chegar em casa."
André foi espancado por volta das 18 horas em uma das ruas mais movimentadas do bairro. "A polícia chegou e tirou-o de cima de mim a base do cassetete, porque ele não parava", conta André. "Depois eu só lembro das pessoas discutindo o que fazer comigo, enquanto eu estava no chão, vazando sangue."
Com ajuda das testemunhas, o estudante de direito denunciou os agressores, que respondem por lesão corporal. O advogado de um dos acusados nega que a motivação tenha sido a homofobia: "Foi uma briga de trânsito", afirma Jorge Salomão, do escritório de advocacia Mariz de Oliveira.
O custo da denúncia
O custo da denúncia é alto para a vítima. André passou mais de um ano envolvido em processos legais que estão longe de terminar. Ele reclama, principalmente, da exposição pessoal.
"Eu só perdi com isso porque eu trabalho no universo jurídico, que é muito conservador. A primeira coisa que aparece quando colocam o meu nome no Google é a minha cara espancada. Sei muito bem as perdas que eu vou ter de arcar na minha vida, porque nunca vou tirar de mim essa violência", afirma. André ressalta, entretanto, que denunciar era seu "dever como cidadão".
O estudante admite também que o incidente alterou a sua percepção de segurança. Apesar de já ter sido assaltado várias vezes, André assegura que esse tipo de violência não o impactou da mesma forma. Assim como várias vítimas relatam, o ataque homofóbico vai contra a própria existência do indivíduo e não contra alguma propriedade.
"Ao contrário do roubo, eu não posso deixar a minha homossexualidade em casa, é algo que eu sou. Com o ataque, eu passei a estar sempre alerta na rua. É triste reconhecer que hoje eu ando de mãos dadas com um homem morrendo de medo", diz André.
Para Juliano, o ataque homofóbico é uma tentativa de anular o outro. "Você se sente muito pequeno e pensa que isso é o que te cabe neste mundo, ser inferior", explica. Ambos ressaltam que não vão mudar de comportamento em uma tentativa de evitar ataques. "Eu me recuso a ter atitudes que socialmente são consideradas masculinas e heterossexuais. Eu prefiro passar por isso tudo de novo. Não vou me esconder", reforça André.
Visibilidade
A luta por visibilidade, no entanto, pode ter também um preço alto. Especialistas apontam que as conquistas da comunidade LGBT também são acompanhadas de uma forte reação por parte dos segmentos sociais conservadores. Isso pode explicar, entre outros fatores, o aumento do número de ataques.
"Há uma onda fundamentalista de ódio e perseguição de LGBT nas grandes cidades. É uma tentativa, através da violência, de frear os avanços dos nossos direitos. Mas é um caminho sem volta", analisa o coordenador do programa estadual Rio sem Homofobia, Cláudio Nascimento.
Um retrato desta divisão entre a comunidade LGBT e setores conservadores é uma enquete do site da Câmara dos Deputados, aberta para votação em 11 de fevereiro. O tema é a definição de família como núcleo formado a partir da união entre homem e mulher. Isto é, o internauta pode concordar ou não com a possibilidade de casais homossexuais formarem uma família.
Em poucas semanas, a enquete já é a mais votada da história do site, com quase meio milhão de votos. A pergunta faz referência ao polêmico projeto de lei do deputado Anderson Ferreira (PR-PE), que cria o Estatuto da Família. Até agora, o resultado está bastante acirrado, com leve vantagem do "sim", que apoia o projeto de lei.
Para Miguel Macedo, presidente do Grupo Diversidade de Niterói, o ataque à ONG ocorreu em meio a muitas conquistas. "Estamos em um momento político muito bom na cidade. Fizemos uma festa de dez anos na praia e outros eventos grandes. Acho que chamamos muita atenção. Mas não adianta colocar empecilho, vamos continuar o trabalho", conta Macedo, que calcula em R$ 10 mil os prejuízos com a destruição da sede.
Um dos momentos de maior visibilidade para a comunidade LGBT foi o primeiro beijo gay masculino em uma novela em horário nobre da Rede Globo, resultando em reações positivas e negativas na sociedade.
Apesar de não ser um estudioso do tema, Juliano também vê nos avanços a possibilidade de uma reação violenta. "Enquanto a novela fez muita gente refletir sobre o preconceito, também aumentou a repulsa de muitas pessoas. Acho que esses dois movimentos vão conviver ainda por muito tempo", afirma.