Aos 50, "Rocky Horror Show" mantém o potencial transgressor
20 de junho de 2023Na tela celebra-se um casamento. Na sala de exibição, arroz voa pelo ar.
Uma jovem loura desce do automóvel, segurando um jornal sobre a cabeça para proteger-se da chuva torrencial. Simultaneamente os espectadores acionam suas pistolas d'água e também se cobrem com jornais.
A loura começa a cantar. Ao chegar no verso "There's a light", centenas de isqueiros iluminam a plateia.
O casal adentra o castelo e se depara com uma festa. Na tela, rebola-se ao som de Time Warp – os espectadores dançam junto. Quando a criatura Rocky, misto de monstro de Frankenstein e marombeiro, é extraída de suas bandagens, papel higiênico voa como serpentina pela sala. Cada linha do texto é falada e cantada junto com os atores.
Terminado o filme, a sala parece estar precisando de uma reforma. Mesmo assim, em breve começa a próxima sessão de The Rocky Horror Picture Show. É um fenômeno totalmente inédito na história do cinema. Assim como é inédito o que ocorre uns meses mais tarde: o arroz do casamento atrai camundongos, eles viram uma verdadeira praga em alguns cinemas.
No início dos anos 80, muita gente era louca pelo Rocky Horror Picture Show, suas personagens, sua música, o happening nos cinemas. Fãs se fantasiavam como o cientista maluco transexual interplanetário Frank-N-Furter, ou como as histéricas criadas Magenta e Columbia. Em algumas salas o filme foi exibido anos a fio: uma de Munique, onde ele está passando até hoje, entrou para o livro de recordes do Guinness.
Como nenhuma sensação é eterna, lá por meados dos anos 80 o interesse generalizado se reduziu. Mas Rocky Horror Show permanece cult como musical. Justiça histórica, pois foi justamente no teatro que o fenômeno começara.
Inspiração no cinema trash dos anos 50
Em 1973 o ator inglês Richard O'Brien levou pela primeira vez ao palco seu Rocky Horror Picture Show. A inspiração para o excêntrico musical lhe veio quando, desempregado, ele se entediava em seu apartamento londrino: uma sátira dos "B movies" trash produzidos nos Estados Unidos nos anos 50 – como os do diretor Jack Arnold, responsável por clássicos de ficção científica-horror como A ameaça que veio do espaço e Tarântula!.
No minúsculo palco do Royal Court Theatre de Londres, The Rocky Horror Show estreou em 19 de junho de 1973, com canções e música de O'Brien, que também representava o sinistro mordomo Riff Raff. Embora produzido com orçamento apertado, o musical conquistou críticos e público, e as programadas cinco semanas de apresentação viraram sete anos ininterruptos.
Os fãs haviam começado a transformar a ida ao teatro num happening. A farra contagiou, a peça foi apresentada também em outros países. Por toda parte, o mesmo quadro: fantasias esdrúxulas, intervenções dos espectadores, arroz. A primeira produção brasileira entrou em cartaz em 1975, sob direção de Rubens Corrêa, no Teatro da Praia do Rio de Janeiro.
Rocky vira filme da meia-noite
Já cerca de um ano após a estreia teatral em Londres, O'Brien e australiano Jim Sharman, que dirigira a produção londrina, sentaram-se juntos para escrever um roteiro cinematográfico. Em 14 de agosto de 1975, The Rocky Horror Picture Show chegava às telas da capital britânica.
Entre os nomes mais famosos do elenco estavam Susan Sarandon, no papel da ingênua Janet; Tim Curry como Frank-N-Furter, "doce travesti de Transexual, Transilvânia", além do próprio Richard O'Brien como Riff Raff. De certo modo, o filme musical estava adiante de seu tempo, abordando com humor irreverente temas como libertação sexual e fluidez de gêneros: LGBTQ+ avant la lettre.
O sucesso não chegou de imediato. Mas aí alguns donos de cinema criativos tiveram a ideia de vender o filme como midnight movie. Isso atraiu às salas as personagens mais excêntricas, que só queriam uma coisa: festa total.
Reza a lenda que a interatividade institucionalizada nos cinemas começou com o filme cinco meses na programação da meia-noite do Waverly Theatre de Nova York, quando, na cena da chuva, um normalmente pacato professor gritou da plateia: "Vai comprar um guarda-chuva, sua piranha pão-dura!"
The Rocky Horror Show como arma LGBTQ?
Segundo o jornal britânico The Mirror, 30 milhões já assistiram a The Rocky Horror Show. Até hoje a peça é encenada em teatros de grande parte do mundo. Fãs recitam palavra por palavra seu texto e canções, brincam com água e papel higiênico. A montagem brasileira mais recente foi em 2017, em São Paulo, diante de plateias devidamente fantasiadas e interativas.
Tanto no Reino Unido como na Austrália o musical cult foi encenado em 2023, celebrando seus 50 anos. "É espantoso como continua se mantendo bem. Nunca contei que ele apelaria a um público maior, além dos amigos e alguns espíritos afins. E achava que íamos esgotar bem rápido esse público potencial", comentou Richard O'Brien ao The Mirror.
Cinco décadas após a estreia em Londres, o modesto ator, dramaturgo e músico gostaria de conquistar ainda mais palcos do mundo com seu musical. Mas não por motivos pecuniários.
"Há muitos países em que eu gostaria de vê-lo – países autoritários, onde ser gay ainda é proibido. Gostaria, por exemplo, de ir à Polônia ou à Rússia. Eu até concederia de graça os direitos de encenação a qualquer um que quisesse montar The Rocky Horror Show lá."