"Amarildo não é um caso isolado", diz especialista da Anistia Internacional
6 de agosto de 2013O caso do pedreiro Amarildo de Souza, recentemente desaparecido na favela da Rocinha, é um exemplo da "cultura de brutalidade" da polícia brasileira, avalia o assessor de direitos humanos da Anistia Internacional no Brasil, Maurício Santoro.
Em entrevista à DW Brasil, o especialista destacou que milhares de pessoas desapareceram no Brasil – 90 mil somente nos últimos 20 anos – e que o caso do pedreiro só chamou a atenção por acontecer num momento em que a sociedade está mobilizada.
Não fosse o contexto atual de protestos no país, Amarildo simplesmente teria entrado nas estatísticas "como mais um homem negro e pobre, que é morto e desaparece", diz Santoro. O caso "exemplifica de modo trágico os principais dramas e contradições da política de segurança pública do Rio de Janeiro", considera.
"O governador disse que era inadmissível que um trabalhador desaparecesse após ser interrogado pela polícia. Ora, é inadmissível que qualquer pessoa desapareça após ser interrogada pela polícia, mesmo que essa pessoa seja um criminoso, o que evidentemente não era o caso do Amarildo", afirma.
Em relação ao também recente julgamento do massacre do Carandiru, o representante da Anistia Internacional avalia a condenação dos policiais como positiva, por sinalizar que uma parcela da sociedade não está mais disposta a aceitar a brutalidade policial. Os aspectos negativos são o tempo que foi necessário para que os julgamentos acontecessem e o fato de os responsáveis políticos não terem sido julgados.
Para Santoro, há um abismo entre a polícia e a sociedade brasileira. A maneira como as polícias estão organizadas dificulta o trabalho dos bons policiais, avalia. "Existem muitos policiais que querem fazer algo diferente", diz.
DW Brasil: Alguns casos envolvendo a conduta das polícias brasileiras têm inspirado questionamentos sobre o preparo dos policiais e a transparência das operações. Essas discussões muitas vezes apontam para o despreparo das forças policiais brasileiras como sendo a origem desses problemas. O senhor concorda?
Maurício Santoro: Entre outros problemas, há o despreparo. Por exemplo, no caso da repressão policial aos protestos ficou muito claro, em muitos momentos, que a polícia não sabia o que fazer diante de uma situação em que tinha que dispersar uma manifestação, ou como se faz para dispersar uma manifestação, enfim, todas essas regras básicas. Houve até mesmo várias declarações, tanto da polícia militar do Rio quanto da polícia militar de São Paulo, a respeito dessa falta de preparo, reconhecendo que era necessário um treinamento melhor.
Mas a falta de preparo explica apenas parte dos problemas. Ela não explica tudo de errado que tem acontecido com a polícia. Por exemplo, quando a polícia tortura alguém, quando acontece um crime de tortura ou uma execução sumária, isso não vem da falta de treinamento. Isso vem de uma cultura de brutalidade, uma cultura de violência, da dificuldade de a polícia ser controlada e prestar contas, e também de uma relação que, em geral, é muito ruim entre a polícia e a sociedade. Isso é fruto de uma longa história de violência, de corrupção, de incapacidade de a polícia assegurar os direitos da população, de garantir a segurança do público.
Quando acontece uma situação de crise, como essa que a gente tem vivido nos últimos dois meses, esse abismo entre sociedade e a polícia fica muito mais evidente. Mas ele não nasceu agora.
Um caso recente que causou comoção nacional é o do pedreiro Amarildo, que não é visto desde que foi levado por policiais para a UPP da favela da Rocinha, em julho. Como a Anistia Internacional avalia o tratamento que as autoridades brasileiras vêm dando ao caso?
O Amarildo, infelizmente, não é um caso isolado no Brasil. A estimativa que temos é que, nos últimos 20 anos, em torno de 90 mil pessoas desapareceram no Brasil. É um número extremamente elevado. Os corpos nunca foram encontrados, esses assassinos nunca foram punidos.
O Amarildo tem um perfil muito parecido com o da situação mais vulnerável do Brasil: ele é um homem pobre, morador de uma favela. Ele só não tem o perfil clássico porque não era jovem. Ele já era um homem de 40 e poucos anos e, em geral, essa vítima tem 18, 19 e até 25 anos.
A primeira reação da polícia – quando houve a denúncia do desaparecimento – foi muito ruim, foi insinuar que ele seria um bandido porque teria uma passagem por roubo na polícia. Depois se comprovou que não era nada disso. Na verdade ele trabalhava como flanelinha e teve uma discussão com um cliente, o cliente o acusou de furto, e depois nada se comprovou.
E mesmo que ele fosse um ladrão, isso não dá à polícia o direito de desaparecer com suspeitos. Aliás, a própria fala pública do governador foi muito preocupante nesse aspecto. Ele disse que era inadmissível que um trabalhador desaparecesse após ser interrogado pela polícia. Ora, é inadmissível que qualquer pessoa desapareça após ser interrogada pela polícia, mesmo que essa pessoa seja um criminoso, mesmo que ela seja culpada, o que evidentemente não era o caso do Amarildo.
O próprio fato de ele ser levado para a UPP já é questionável. A PM não é polícia judiciária. Ele deveria ser levado para uma delegacia, ele deveria ter sido interrogado numa delegacia de polícia, e não numa UPP, também por conta dessa falta de registros, dessa falta de material para fazer um controle, uma supervisão mais séria do que está acontecendo nas UPPs [em referência às câmeras quebradas e à falta de informação dos aparelhos de GPS das viaturas].
Com a repercussão do caso, as autoridades rebatem críticas de que a imagem das UPPs estaria afetada. O que esse caso diz sobre as UPPs, na opinião da Anistia Internacional?
Na nossa visão, a UPP é um passo adiante, é uma política importante, tem dado resultados positivos, mas ela não é uma varinha de condão que vai resolver todos os problemas da polícia num passe de mágica. E uma dessas dificuldades é que a polícia que está na UPP á a mesma polícia que está no resto da cidade, envolvida numa série de ações violentas.
Não houve, por exemplo, um esforço de reforma da polícia. A polícia continua tendo uma cultura muito violenta. Em muitos casos – não em todos, mas em muitos casos – continua a ver os moradores das favelas como inimigos ou, pelo menos, como suspeitos em potencial.
Em junho, uma ação policial no conjunto de favelas da Maré resultou na morte de dez pessoas. No caso da favela da Maré, o comando nega execução, mas o caso vai passar por uma avaliação técnica. O secretário-geral da Anistia está no Brasil e visitou o local. Como o senhor vê esse tipo de ação da polícia brasileira?
Começamos a atuar na Maré por solicitação das organizações locais, que nos enviaram uma quantidade muito grande de episódios de violência policial, sobretudo com relação a revistas policiais. São denúncias de policiais abordando moradores de forma muito truculenta, tanto na rua como dentro de casa, com agressões, xingamentos, furtos de objetos ou de dinheiro. Então começamos, no final do ano passado, uma campanha na Maré chamada Sou da Maré e Tenho Direitos, dizendo o que a polícia pode e não pode fazer no ato da revista, chamando a atenção dos moradores e da própria polícia.
Há um nível bom de diálogo nosso com as organizações e sempre que eles se encontram conosco, os comandantes dizem que querem controlar os problemas, mas há uma lacuna muito grande entre essas falas da cúpula da polícia e o trabalho policial como ele de fato ocorre com o guarda na esquina, sobretudo quando essa esquina fica numa favela. Então o caso do Amarildo não é isolado, volto a dizer. Inclusive o número de desaparecimentos tem aumentado, mesmo depois das UPPs, quer dizer, as UPPs não conseguiram resolver isso.
O caso dele só chamou a atenção porque aconteceu num momento em que a sociedade está mobilizada. Se isso tivesse acontecido há um ano, não teria nem sido noticiado. Teria entrado simplesmente nas estatísticas, como mais um homem negro e pobre no Brasil, que é morto e desaparece, ninguém sabe, ninguém viu.
É claro que as pessoas que fizeram isso com ele – sejam quem forem essas pessoas, sejam policiais, sejam traficantes – não imaginaram que [o caso] teria essa repercussão. Amarildo virou um símbolo muito poderoso. Virou uma história que exemplifica de modo trágico os principais dramas e contradições da política de segurança pública do Rio de Janeiro.
Como a Anistia recebeu o resultado da segunda fase do julgamento do chamado ‘massacre do Carandiru'?
É o segundo julgamento deste ano e nos dois casos foram passos à frente importantes. Nos dois julgamentos – e gostaria de ressaltar bem esse ponto – tivemos júris populares condenando policiais por terem executado pessoas que estavam presas. Isso é um divisor de águas porque sinaliza que pelo menos setores da sociedade brasileira não estão mais dispostos a aceitar a brutalidade policial, mesmo quando ela é exercida contra pessoas que estavam na cadeia.
Isso é um sinal grande de que a sociedade brasileira está perdendo a tolerância com esse tipo de brutalidade. Os valores no Brasil estão mudando, a consciência da sociedade brasileira está mudando. Esse é o ponto positivo.
O primeiro ponto negativo é que nenhum dos julgamentos do Carandiru envolveu a responsabilidade política. Todos eles jogaram a responsabilidade desse massacre nos policiais, nas pessoas que executaram a operação, mas não existe uma apuração sobre a responsabilidade do secretário de segurança, a responsabilidade do governador do estado. Quem deu a ordem? O que era pra fazer exatamente? Isso deveria ter sido um elemento importante desse julgamento.
O segundo ponto negativo é o tempo que levou até esses julgamentos acontecerem. Estamos falando de um intervalo de 21 anos. Na verdade, muitos dos réus já morreram. Quando se leva 20 anos para ter esse tipo de condenação – que ainda está sujeita a recursos – isso também é um elemento que incentiva muito a impunidade.
Durante o julgamento, o papel da polícia, tanto nos presídios quanto nas ruas, veio à tona. A defesa alegou, entre outras coisas, a falta de estrutura da PM na época, que não forneceria segurança suficiente para os 360 policiais que invadiram o pavilhão 9. A polícia evoluiu – tanto em estrutura quanto em táticas – desde o massacre do Carandiru até hoje, acompanhando a evolução mencionada pelo senhor na mentalidade da população brasileira?
Existe uma distância grande entre a polícia e a sociedade brasileira, mas a polícia também não está isolada da sociedade. Ela também muda, ela também reflete as transformações da opinião pública. O problema é que a polícia tem mudado numa velocidade muito mais lenta do que o resto da sociedade brasileira. Houve, nesses últimos 20 anos – do Carandiru para cá –, vários processos importantes de reforma na polícia.
Eu já citei as UPPs, mas há uma série de outras tentativas de se criar uma polícia marcada por um trabalho sério de investigação e de prevenção. Eu também não quero generalizar e dizer que todos os policiais têm essa cultura da violência, porque não acho que seja assim. A importância dessa agenda da reforma policial é um tema que está em discussão dentro da própria polícia, agora com mais força por causa dos protestos no Brasil.
Com essa polícia não dá, com o tipo de instituição que temos hoje no Brasil, o modo como as polícias estão organizadas, isso incentiva o que a polícia tem de ruim e dificulta muito o trabalho dos bons policiais, das pessoas que querem fazer algo diferente. E existem muitos policiais que querem algo diferente.