Abuso na infância aumenta chances de depressão pós-parto
13 de maio de 2024Quando a secretária Sandra deu à luz, há dois anos, a aceitação do filho não ocorreu da maneira como ela esperava e sonhava. "Eu não tinha ânimo para nada, não queria sair da cama. Sentia um arrependimento grande por ter decidido engravidar e queria voltar à vida como era antes", conta ela, que pediu para ter seu nome trocado pela reportagem.
Agora, ela se sente recuperada. Atribui a situação ao fato de que foi diagnosticada naqueles dias com uma condição que afeta muitas mulheres em todo o mundo: a depressão pós-parto. "Fiz muita terapia e enfrentei traumas que nem me lembrava que existiam", revela.
Entre eles, o abuso que sofreu na infância. Filha de uma empregada doméstica paulistana, Sandra costumava acompanhar a mãe no trabalho, principalmente aos sábados. E, a partir do início da adolescência, a patroa passou a molestá-la. "Ela me tratava como se eu fosse inferior, dizia que eu era burra e não iria nunca ser alguém na vida. Como não queria criar problemas para minha mãe, ficava quieta. Então ela começou a me tratar também como se fosse sua empregada, mandando que eu fizesse coisas como servir chá e levar comida para o quarto dela", recorda.
Dali para os abusos se tornarem sexuais, foi um passo. "No começo, ela mandou, brava, que eu massageasse os pés dela. Logo, estava obrigando que eu fizesse coisas que eu nem sabia que eram possíveis, na minha inocência", diz ela.
Os abusos duraram dois anos e só foram interrompidos quando a mãe mudou de emprego. O abuso sexual era seguido de uma violência psicológica, já que Sandra era condicionada a ficar em silêncio porque a patroa dizia que, em caso contrário, a mãe seria demitida.
Abuso e depressão pós-parto
Separados por quase 20 anos, esses dois episódios da vida de Sandra podem estar correlacionados. Segundo um estudo publicado nesta segunda-feira (13/05) na Revista Latino-Americana de Enfermagem, mulheres que sofreram abusos na infância e na adolescência têm mais chances de desenvolverem depressão pós-parto. É a primeira vez que uma investigação acadêmica do tipo é realizada no Brasil.
O trabalho foi realizado em conjunto por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade de Rio Verde (UniRV) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). O estudo contou com a participação de 253 puérperas, com filhos nascidos entre fevereiro e abril de 2022.
A pesquisa considerou critérios científicos para garantir que o grupo tivesse uma ampla gama de variáveis, dentre as quais o tempo de gestação, o status de relacionamento, histórico de diagnóstico de depressão e casos de abortos anteriores.
Traumas
As participantes da pesquisa foram recrutadas entre o segundo e o quinto dia do parto e seguiram sendo acompanhadas pelos acadêmicos ao longo de alguns meses. De acordo com o levantamento, 53% das puérperas experimentaram ao menos um tipo de trauma na infância — foram cinco os analisados: os abusos emocional, físico e sexual, e as negligências emocional e física.
O abuso emocional foi o mais comum, relatado por 34% das mulheres participantes. Outras 27% afirmaram terem sofrido negligência emocional, 26% negligência física, 23% abuso sexual e 18% abuso físico.
A pesquisa cruzou os dados com os casos diagnosticados de depressão pós-parto e concluiu que essa relação estava presente em 37% da amostra. "Esses resultados mostraram que o histórico de diferentes tipos de abuso e negligência estão associados à depressão pós-parto. Por isso é importante considerarmos as experiências traumáticas vivenciadas por mulheres na infância durante a assistência pré-natal", afirma a enfermeira Maria Neyrian de Fátima Fernandes, professora na Universidade Federal do Maranhão e uma das autoras do trabalho.
"A depressão pós-parto tem o potencial de afetar o vínculo entre mãe e filho e isso afeta o cuidado e também o desenvolvimento da criança. Então precisamos considerar essas experiências da infância que possam acarretar predisposição a desenvolver depressão pós-parto", ressalta.
A correlação mais impressionante encontrada pelo estudo está nos casos de mulheres que sofreram abuso emocional quando jovens e, depois, desenvolveram a depressão pós-parto. "Realizamos análises estatísticas multivariadas para controlar alguns fatores de confusão que poderiam influenciar. Queríamos realmente identificar os efeitos dos traumas", acrescenta o enfermeiro Elton Brás Camargo Júnior, professor na Universidade de Rio Verde e coautor do trabalho.
Ele conta que, segundo a pesquisa, mulheres que sofreram abuso emocional na infância têm 6,29 vezes mais chances de desenvolverem depressão pós-parto. O abuso emocional é uma forma de violência não-física muito difícil de ser percebida, porque costuma não deixar consequências visíveis. Mas, em geral, implica na queda da capacidade de confiança no outro.
Esse tipo de abuso pode ser cometido na forma de manipulação, quando a vítima é induzida a acreditar em uma realidade planejada, criada e mantida pelo agressor. Não raras vezes, também ocorrem ofensas, geralmente questionando as capacidades e habilidades da vítima. Essas ofensas acarretam na diminuição da autoestima.
Estresse precoce
De acordo com a enfermeira Edilaine Cristina da Silva Gherardi-Donato, professora na Universidade de São Paulo e também autora da pesquisa, a mulher vítima de violências na infância tem mais propensão a desenvolver sintomas de depressão pós-parto devido à vivência do chamado "estresse precoce". "São situações de vida que ultrapassam a capacidade dessa criança de superar [a violência], com a ausência de suporte social ou familiar", afirma.
"Temos vários processos naturais do corpo para regular nosso sistema e poder responder aos próximos eventos estressores. Quando eles são muito fortes ou prolongados, esses mecanismos se desregulam, deixando a mulher, na vida adulta, mais predisposta [a desenvolver sintomas], com menos recursos psicológicos para lidar com essas situações", comenta Gherardi-Donato.
A professora ressalta que "a gestação e o parto, por si sós, são eventos da vida que podem gerar uma crise emocional", por conta da mudança de papéis e de todas as questões envolvidas.
Por isso, os pesquisadores defendem uma avaliação de traumas pregressos durante o pré-natal, o que ajudaria a prevenir e tratar casos de depressão pós-parto.
A pesquisa publicada nesta segunda foi realizada a partir de uma amostragem recrutada em maternidade pública na cidade de Rio Verde, no estado de Goiás. Principalmente por ser um trabalho inédito no país, a enfermeira Gherardi-Donato destaca a importância do desenvolvimento de "estudos de base nacional", o que poderia extrapolar as conclusões do momento.