Revolução líbia
30 de agosto de 2011O líder deposto Muammar Kadafi e seus aliados não têm muitos amigos pelo mundo no momento. Mas o governo da vizinha Argélia contrariou a tendência internacional ao oferecer abrigo para a esposa de Kadafi, três de seus filhos e sua neta – o ministro da Saúde da Argélia informou que a filha de Kadafi, Aisha, deu à luz uma menina nesta terça-feira (30/08).
Um porta-voz do governo argelino disse que seu país deu abrigo aos familiares de Kadafi por razões humanitárias. Mas as relações cordiais entre a Argélia e Kadafi são de longa data.
Desde os anos 1980, os dois países têm estado do mesmo lado em muitas questões regionais, incluindo a independência do Saara Ocidental e a hostilidade em relação a Israel. E isso basicamente porque a Argélia e a Líbia são Estados fundamentalmente parecidos.
"Há muitos paralelos, incluindo o fato de que, a despeito dos argumentos da Argélia, ambos são ditaduras sem qualquer tipo de liberdade", disse o especialista em Oriente Médio Werner Ruf à Deutsche Welle. "Além disso, ambos são Estados cuja riqueza vem principalmente da exportação de matérias-primas."
O presidente da Argélia, Abdelaziz Bouteflika, tem motivos para temer os protestos populares que sacudiram o Oriente Médio e o Norte da África este ano, e que levaram à queda de Kadafi na Líbia. Manifestantes ocuparam as ruas na Argélia por diversas vezes, embora lá o escopo dos protestos não tenha tido as mesmas dimensões que no Egito ou na Líbia.
Assim, o fato de a Argélia dar abrigo aos membros do clã Kadafi é coerente com a posição do governo argelino de resistir mudanças políticas em toda a região – uma posição que tem causado atrito considerável no cenário internacional.
Medo do passado
Desde o início, a Argélia foi contra a imposição pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) de uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia, que foi crucial para o eventual triunfo da rebelião.
A Argélia também é o único dos vizinhos da Líbia no Norte da África a não reconhecer o Conselho Nacional de Transição (CNT) como governo legítimo do país. De fato, ambos os lados só se encontraram para discutir a situação no começo desta semana.
O CNT acusa a Argélia de apoiar Kadafi ativamente durante a guerra civil na Líbia. Recentemente, tropas rebeldes invadiram e causaram danos à embaixada da Argélia na capital líbia, Trípoli. Os funcionários da embaixada fugiram e a Argélia apresentou uma queixa formal às Nações Unidas.
Mas para entender o receio da Argélia em relação à rebelião líbia, é preciso compreender primeiro o passado recente do país. "A Argélia sente-se definitivamente sob pressão agora. É um país que teve a sua própria história de batalha contra os islamitas 20 anos atrás e tem medo de uma desestabilização", explica Ruf.
O governo argelino enfrentou uma guerra civil e foi vencido em disputas eleitorais por vários grupos islâmicos entre 1991 e 2002. Acredita-se que de 150 mil a 200 mil pessoas tenham morrido nos violentos conflitos.
Bouteflika surgiu desse conflito e tomou a presidência da Argélia em 1999 com a ajuda do exército. Ele governa o país desde então, principalmente com poderes concedidos a ele sob estado de emergência.
O governo da Argélia tem afirmado repetidamente que há membros islamitas, alguns com conexões com a Al Qaeda, entre os rebeldes líbios. Seria essa afirmação apenas propagando ideológica?
Movimento dos anônimos
As declarações do governo argelino sobre a constituição do movimento rebelde na Líbia refletem, é claro, seus próprios interesses. Mas isso não significa que o argumento seja totalmente infundado.
"Quem são esses rebeldes?", pergunta Ruf. "Ninguém sabe ao certo, mas há certamente islamitas entre o CNT."
O pesquisador cita, em particular, a influência da organização sanusi, uma constelação político-religiosa que existe na Líbia desde meados do século 19. Os sanusi lutaram contra o colonialismo e levaram ao poder o único rei da Líbia, Idris 1º, que conquistou a independência da Líbia em 1951 e foi deposto por Kadafi em 1969.
O movimento é particularmente forte no leste da Líbia, onde a rebelião começou, e cerca de um terço dos muçulmanos na Líbia devem ter conexões com os sanusi. Um telegrama diplomático secreto dos Estados Unidos, datado de 2008 e publicado em janeiro pelo jornal britânico Daily Telegraph, afirma: "Diferente do resto do país, os sermões nas mesquitas do leste da Líbia exortam os fiéis a apoiar a jihad no Iraque e em outras partes com contribuições financeiras."
Em comunicado oficial, o Conselho Nacional de Transição rebelde diz que seu principal objetivo é manter a paz e eliminar a influência de Kadafi na Líbia. Em uma declaração divulgada em março, o CNT também escreveu: "O Conselho Nacional de Transição afirma a identidade islâmica do povo líbio, o seu compromisso com os valores do islamismo moderado, sua total rejeição a ideias extremistas e seu compromisso de combatê-las sob todas as circunstâncias, e rejeita as alegações que visam a associar a Al Qaeda com os revolucionários na Líbia."
Sem dúvida, nas próximas semanas e meses, haverá muito mais para se saber de um movimento que começou com um exército de maltrapilhos e derrubou um ditador acuado. Mas a tensão entre a atual liderança transitória na Líbia e o governo da Argélia deve continuar. O CNT considera a decisão argelina de garantir refúgio à família de Kadafi um "ato de agressão" e exige o seu expatriamento.
Autor: Jefferson Chase (ff)
Revisão: Roselaine Wandscheer