A rua de batalhas contra a especulação imobiliária em Berlim
29 de abril de 2019O Primeiro de Maio costumava ser um dia de protesto em Berlim, com o auge das manifestações ocorrendo no bairro de Kreuzberg. A tradicional marcha da esquerda autônoma tomava conta há mais de 30 anos do bairro. Na maioria das vezes, ela terminava em violentos confrontos entre policiais e manifestantes.
Na tentativa de conter os ânimos explosivos, foi criada há mais de 15 anos uma festa com diversos palcos espalhados por Kreuzberg para apresentações artísticas, em paralelo a uma feira culinária. A chamada Myfest alcançou seu objetivo nos últimos anos, porém, acabou esvaziando o significado político da data ao atrair cada vez mais turistas interessados em fazer farra.
Devido ao esvaziamento do significado político do Dia dos Trabalhadores, neste ano, os organizadores do Protesto Revolucionário de Primeiro de Maio resolveram mudar a rota da marcha, transferindo a manifestação para Friedrichshain – um dos bairros berlinenses que mais tem sido impacto pela gentrificação nos últimos anos.
Sob o lema "Contra a cidade dos ricos", os manifestantes pretendem protestar nesta quarta-feira (01/05) contra a especulação imobiliária e o violento processo de gentrificação que tem obrigado moradores mais pobres a deixarem suas casas por não terem mais condições de pagar os aluguéis.
Como sempre, os organizadores não pediram autorização da polícia para a marcha – na Alemanha todo protesto precisa ser previamente registrado e autorizado. A rota, porém, já foi divulgada na internet e passará por uma rua que se tornou nos últimos anos um dos principais palcos de conflitos na luta contra a especulação imobiliária em Berlim: a Rigaer Strasse.
A Rigaer Strasse ganhou destaque na década de 1990, quando vários prédios foram alvo de ocupações. Alguns dos imóveis foram desocupados pouco tempo depois, enquanto outros acabaram sendo legalizados com contratos de aluguel fechados entre os novos moradores e as empresas públicas donas dos prédios.
No final dos anos 1990, no entanto, alguns dos prédios foram vendidos. Foi quando começaram os conflitos. A empresa que adquiriu alguns dos imóveis, incluindo o edifício número 94, que se tornou um bastião da esquerda radical em Berlim, cancelou os contratos de aluguel e ordenou que os moradores deixassem suas casas.
A ideia por trás do despejo coletivo era modernizar os apartamentos para aumentar os valores dos aluguéis. Vários conflitos ocorreram na região, inclusive durante desocupações realizadas pela polícia. O impasse se arrastou por anos, e a dona do prédio número 94 foi vencida pelo cansaço. Em 2014, vendeu o edifício para uma empresa de investimentos com sede em Londres. A nova proprietária do imóvel sabia da situação e não estava disposta a ceder à pressão dos moradores.
Em 2016, a violência atingiu seu ápice quando a polícia tentou desocupar um bar no térreo do prédio. Nos dias seguintes, a rua foi palco de protestos, como carros incendiados e prédios luxuosos construídos na região depredados.
Neste ano, a Justiça julgou o despejo promovido pela polícia na época como ilegal. Além disso, no passado, o bar também ganhou a batalha para continuar funcionando, afinal, depois de várias audiências e convocações judiciais, não foi possível determinar quem são os verdadeiros donos da empresa que comprou o prédio. Sem dono, sem propriedade. Especula-se que a empresa seja apenas de fachada, usada para lavagem de dinheiro.
Além do bastião da esquerda radical, outros prédios na rua também se tornaram problemáticos. Em 2017, temendo depredações e protestos, os donos de um bloco da Rigaer Strasse fecharam o quarteirão inteiro para a construção de um complexo de apartamentos de luxo. Nem pedestres podiam passar pelo local.
Alguns moradores da região temem que essas rápidas transformações impulsionem ainda mais o aumento dos preços de aluguéis, fazendo com que muitos sejam obrigados a deixar suas casas.
Numa cidade onde essa transformação desenfreada tem tirado o sono de muitos, a escolha da rota da marcha de Primeiro de Maio parece acertada, mas o potencial de conflito é alto. Principalmente ao longo da Rigaer Strasse, da qual um trecho continua fechado.
Enquanto isso em Kreuzberg, os moradores também não estão mais curtindo a Myfest. Muitos se queixam da bagunça deixada na região pelos participantes da festa e pela falta de respeito e de boas maneiras dos frequentadores do evento. Assim, neste ano, apenas quatro palcos serão montados. Entre os shows haverá discursos políticos, e um toque de recolher foi imposto para as 21h.
Clarissa Neher é jornalista da DW Brasil e mora desde 2008 na capital alemã. Na coluna Checkpoint Berlim, escreve sobre a cidade que já não é mais tão pobre, mas continua sexy.
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