A literatura brasileira sob regimes autoritários
1 de abril de 2014Se a história mantém em nossa memória o registro de regimes autoritários em suas datas e listas de nomes, é na literatura que muitas vezes sobrevive o aspecto humano e pessoal das tragédias que esses governos desencadeiam.
Num país como o Brasil, que viveu sua vida política no século 20 sob o comando e constante ataque e intervenção de militares, e onde a democracia era a exceção, não a regra, é através dos romances e poemas de homens e mulheres que se opuseram a esses regimes que hoje podemos abordar o cotidiano de medo daqueles tempos.
Muitas vezes distantes no tempo para as gerações mais novas, a história tende a tornar abstratos os sofrimentos reais – físicos e emocionais – dos que estiveram sob suas torturas, tanto físicas como emocionais.
Na sequência de intervenções militares que destituíram governos eleitos para instituir longos regimes de tortura e perseguição, a literatura brasileira foi se formando com constantes intervenções da parte de seus escritores no desenrolar sangrento dos acontecimentos.
Cárcere e perseguição
O século 20 da literatura brasileira começa com um romance de acusação contra a sandice dos governos brasileiros em Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, e é num romance como Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915), de Lima Barreto, que podemos entrever o que pode ter sido realmente viver sob o governo autoritário de Floriano Peixoto.
Jorge Amado foi obrigado a exilar-se na década de 40, após o golpe militar de 1930, que depôs o presidente Washington Luís e levou Getúlio Vargas ao poder. Foi das prisões da polícia política de Vargas que emergiu um de nossos maiores documentos políticos e literários, os dois volumes das Memórias do Cárcere (1953, póstumo), de Graciliano Ramos, que já havia representado o ambiente de opressão do regime no romance Angústia (1936), publicado enquanto o autor estava preso.
Das mesmas prisões de Vargas surgiria o escritor Dyonélio Machado, com seus romances Os Ratos (1935) e O Louco do Cati (1942). E sempre será possível sentir, ao menos em linguagem, a opressão do Estado Novo em poemas de Carlos Drummond de Andrade, especialmente em seus livros Sentimento do Mundo (1942) e A Rosa do Povo (1945).
Música contra o regime
As representações mais populares, em linguagem, sobre o tenebroso período do regime militar entre 1964 e 1985 vêm geralmente da poesia cantada. São em canções de Chico Buarque, como O que será (à flor da terra), e de Geraldo Vandré, como Para não dizer que não falei de flores, que pensamos quando discutimos a resistência à ditadura.
Sobre a experiência do exílio, há as canções de Caetano Veloso compostas na Inglaterra. A Canção da América, de Milton Nascimento, é uma trilha sonora comum para os relatos da anistia de 1979. Com a força dos meios de comunicação mudando para a televisão nos anos 60, esses artistas da linguagem podiam alcançar a população brasileira de uma forma que era muito mais difícil para romancistas e poetas, que dependiam da publicação por editoras e sua distribuição.
Na literatura, foi a contrapelo e muitas vezes escritos e publicados no exílio que alguns dos relatos mais fortes sobre o período chegaram, como é o caso do romance Zero (1974), de Ignácio Loyola Brandão, publicado originalmente na Itália, e o Poema Sujo (1976), de Ferreira Gullar, que primeiro circulou no Brasil por meio de uma gravação do poeta numa fita-cassete, feita por Vinícius de Moraes em Buenos Aires, onde Gullar estava exilado.
A opressão do regime pode ainda ser sentida no livro de estreia do poeta baiano Waly Salomão, Me segura qu'eu vou dar um troço (1972), e no livro de Fernando Gabeira, O Que É Isso, Companheiro? (1979), que se tornou bastante conhecido após a filmagem de Bruno Barreto, em 1997, transformando-se num dos relatos mais famosos sobre o período da ditadura militar.
No entanto, a atitude dos brasileiros em relação à ditadura e a recusa do governo em abrir seus arquivos e discutir o período têm levado a um conhecimento parco da melhor literatura do período, como é o caso do romance caleidoscópico de Ivan Ângelo, A Festa (1963/1975). Publicado pela primeira vez em meio aos tumultuados anos de João Goulart na presidência, o livro nos mostra um panorama da conflituosa sociedade brasileira de então, que mais tarde se dividiria entre o apoio e a resistência ao regime militar, como também em Quarup (1967), de Antônio Callado, no qual se desenrolam os impasses políticos entre a regime de Vargas e o dos militares de 64.
Outro escritor que lidou de forma contundente com o período foi Luiz Fernando Emediato, que tratou da Guerrilha do Araguaia no conto Trevas no paraíso e publicaria ainda, entre outros, o conto intitulado, de forma bastante arriscada para a época, Como estrangular um general.
Representação atual do período
Em seu importante estudo Alegorias da derrota: a ficção pós-ditatorial e o trabalho do luto na América Latina, Idelber Avelar escreve que "A própria empresa da literatura parece haver chegado, a partir da crise desta relação constitutiva com o nome próprio que sempre lhe caracterizou, a uma situação de isolamento irreversível. Nesse sentido, o luto pós-ditatorial seria também um luto pelo literário".
Na década de 90, com o discurso triunfal do capitalismo vencedor pós-queda do Muro, do fim da história, multiplicaram-se os debates sobre a morte do autor ou da função do escritor na sociedade.
No Brasil, com a instituição do conceito do pós-utópico por Haroldo de Campos, a literatura isolou-se e perdeu grande parte do seu espaço de questionamento da sociedade brasileira. Ao contrário de países como Argentina e Chile, havia uma recusa a discutir aquele passado incômodo.
Contra o triunfalismo nacionalista dos tempos do Plano Real, começam a surgir figuras questionadoras isoladas, como no teatro de Denise Stoklos, especialmente em seu texto para o espetáculo Vozes Dissonantes (1999), e ainda da Companhia do Latão ou do Teatro da Vertigem.
Foi nos últimos anos que a literatura brasileira voltou a tratar com força do período. Entre os contemporâneos, o regime militar tem sido tema constante no trabalho de Beatriz Bracher, que teve na Alemanha traduzido e publicado recentemente o romance Antonio (2007), que traça uma saga familiar que vai de Vargas à redemocratização dos anos 80. A autora, uma das mais importantes entre os escritores contemporâneos, já havia abordado a época em Não falei (2004).
Mas poucos autores têm demonstrado trabalho mais obsessivo e contundente com o período que o poeta e jurista carioca Pádua Fernandes, radicado em São Paulo. Com um extenso trabalho de pesquisa nos arquivos do Dops em São Paulo, Fernandes vem destrinchando os papéis da ditadura, em textos que unem seu conhecimento legal a seu discernimento poético para expor os crimes do regime militar e seus traços deixados na linguagem de seus documentos.
Em sua coletânea de poemas Cinco lugares da fúria (2010), Pádua Fernandes volta-se para a linguagem poética para fazer um dos ataques mais contundentes às heranças sangrentas que nos legou o regime militar, que segue matando e torturando ainda hoje nas mãos de sua polícia.
Se pensamos nessas heranças do regime militar, na violência policial e na desigualdade acirrada pelo período, podemos ler mesmo livros como Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, ou Elite da Tropa (2006), do trio André Batista, Rodrigo Pimentel e Luiz Eduardo Soares, como textos que nos levam também a um debate sobre as consequências da última intervenção militar na vida política do país.
Com a intensificação dos debates em torno da Comissão da Verdade e a reivindicação de que a Lei de Anistia seja revista, podemos esperar por cada vez mais relatos literários que tentem dar conta de um dos momentos mais tenebrosos da história do Brasil.