"Tudo num livro é autobiográfico", diz Michel Laub
15 de outubro de 2013Segunda Guerra Mundial, Holocausto, Auschwitz. Foi sobre esse tema – delicado e inesgotável – que o autor Michel Laub decidiu escrever em Diário da Queda. O livro, publicado em 2011 no Brasil, acaba de ser lançado na Alemanha, com o título Tagebuch eines Sturzes.
Misturando ficção e autobiografia, a história parte de um garoto de 13 anos e sua adolescência conturbada para uma reflexão sobre identidade e dilemas morais do passado. Para isso, Laub aborda a trajetória e a difícil relação com o pai e a história do avô, sobrevivente de Auschwitz que registrou suas memórias em um diário secreto.
Desde a estreia na literatura, com a publicação de Música Anterior (2001), Laub publicou outros cinco romances. O próprio autor, gaúcho nascido em 1973, define seus livros como "novelas curtas, realistas e psicológicas". No jornalismo, foi editor-chefe da revista Bravo e hoje é colunista da Folha de S.Paulo e da revista Vip, além de atuar como freelancer.
Em entrevista à DW, Laub falou sobre o Diário da Queda, o desafio de lidar com o tema Holocausto e aspectos autobiográficos e a boa recepção do público alemão.
DW: Logo no início do livro Diário da Queda, você diz que o tema da Segunda Guerra e Holocausto já foi abordado inúmeras vezes pelo cinema, pelos livros, por historiadores, filósofos e artistas. Por que, então, você decidiu falar desse tema outra vez?
Michel Laub: É muito difícil dizer por quê. Sei dizer por que decidi abordar daquele jeito: para tentar fazer a história mais única possível dentro de um tema já tratado tantas vezes. É uma história que não fala diretamente do Holocausto. Fala da sombra do Holocausto sobre uma família. Outros autores já fizeram isso, mas aquela história, daquele jeito, com essa proximidade em relação ao que eu sou, mais do que do que vivi, isso eu tenho certeza que só eu posso fazer, porque sou eu o autor. Todo mundo já sabe sobre Auschwitz. O desafio é entrar em uma coisa que está cheia de lugares-comuns – de linguagem, de pensamento, de abordagem – de maneira que desestabilize essas certezas ou pelo menos tente desestabilizar.
Você poderia falar um pouco mais de como tentou deixar a história única?
A narrativa do Holocausto é sempre de vítimas de um lado e opressores do outro. Ela tem que ser, de certa maneira, porque é histórica. E o livro não é isso. Ele vai e volta com essa história de vítimas e algozes por meio de ciclos de violência. É situado em Porto Alegre, um lugar que não é a Europa; nos anos 1980, que a princípio não são relacionados com o Holocausto. Falo de violência doméstica e relaciono isso ao Holocausto. São maneiras de pensar sobre o tema. Considero isso mais significativo do que fazer mais um livro explicando que o Holocausto foi horrível e que meu avô foi vítima.
O livro acaba de ser traduzido para o alemão. Na Alemanha, ainda existe certo tabu para falar desse tema. Como é a recepção do livro no país? Existe um interesse particular justamente por se tratar desse tema?
Talvez eles se interessem pelo fato de ser um sul-americano falando. Até agora, gostei bastante das leituras na Alemanha, das perguntas que as pessoas fazem. As pessoas vêm para eu assinar o livro. Algumas resenhas já saíram falando bem. Espero que gostem ou que cause alguma discussão. A pior coisa para um livro é ser tratado com indiferença.
O livro exigiu muito tempo de pesquisa histórica? A experiência como jornalista ajudou na hora de escrever?
Algumas leituras eu já tinha feito. Na verdade, meus livros são considerados muito autobiográficos. O que eles têm sempre é a ambientação em lugares ou tempos em que eu vivi. Por exemplo, acabei de lançar A maçã envenenada, que se passa no Exército, e eu fiz Exército. A história não tem nada a ver com a minha, mas consigo falar na linguagem que um militar usa, saber o nome da camisa, da bota. E isso me poupa o trabalho de pesquisa e ajuda a deixar o livro mais verdadeiro. No caso do Diário da Queda e da Segunda Guerra, eu estudei em escola judaica, então, não precisava de muito esforço para descrever o ambiente daquele jeito.
O Diário da Queda já foi classificado como autoficcção. O quão autobiográfico e o quão ficcção é o livro?
Tudo é autobiográfico num livro, porque o escritor se baseia na própria memória, nem que seja para inventar. Mas por exemplo, o personagem tem um pai que morreu de Alzheimer, e meu pai não morreu de Alzheimer. Mas claro que as sensações, as emoções que tem ali no meio vão, em algum momento, falar de coisas que senti algum dia. Você faz uma espécie de transplante do que sentiu. A perda do cachorro da infância é usada para falar de uma perda amorosa, por exemplo.
No livro você trata de três gerações da família. Fala do seu avô para falar do seu pai e, por consequência, de você. Como a sua família reagiu ao livro?
Muitas pessoas acham que é autobiográfico por ser escrito em primeira pessoa, mas não é. A minha mãe gostou muito do livro. Bom, a minha mãe sempre gosta [risos]. E meu pai não estava mais vivo quando saiu. Não sei se literatura tem algum compromisso ético, porque tem escritores que são uns canalhas e são excelentes. Se tenho algum compromisso ético, é o de saber que, se tenho um filho e vou escrever uma história cujo personagem tem um filho, sei que alguém vai achar que aquele filho é meu. É bom ter essa consciência, porque na hora de escrever você pelo menos lida com o dilema de expor ou não expor. Quando você escreve, ou vai contra os seus pudores e os supera ou não escreve.
Você diz que seus livros são todos parecidos. Por quê?
Eu não sei. Surpreende-me quando vejo depois a sequência deles. Devem ser algumas obsessões que tenho no meu inconsciente. Acho que muitos escritores repetem temas, porque são o que os preocupa. Claro que a história mais substancial eu não vou repetir, mas o que está por baixo da história acaba sendo muito repetido, porque eu não mudei tanto de um livro para o outro.
Quais são os elementos que se repetem?
Questões de traição e fidelidade, não só amorosa; escolhas que determinam destinos; memórias de juventude. Talvez o que sempre haja em todos os livros seja a investigação interna de dilemas morais do passado; porque alguém se tornou aquilo que é a partir de decisões do passado. É quase uma autoanálise constante minha por meio de várias histórias.
Já está preparando o próximo livro?
Sim, vai se passar no universo adulto em São Paulo. Todos os meus livros já têm São Paulo, mas em contraste com memórias de juventude de Porto Alegre. No Diário da Queda, o personagem tem 13 anos em boa parte da história; em A maçã envenenada, que fala do Exército, o personagem tem 18 anos; e no novo, vai ter 35, 40. É uma espécie de trilogia. E aí a perspectiva é diferente, já não tem aquela intensidade do sentimento de juventude. A maçã envenenada fala de primeiro namoro, uma coisa muito romântica, de certa maneira. O novo não vai ser assim.
Você foi um dos 20 escritores selecionados pela revista Grantapara a edição especial “Os melhores jovens escritores brasileiros”. O que significou isso para a sua carreira?
Sou mais ou menos jovem. Tenho 40 anos. A edição era até 39 anos, e entrei no último semestre de prazo. Então, rejuvenesci por causa da Granta. Mas estou na mesma edição da Luisa Geisler, que tem 20 anos. Ela é a nova geração, não sou eu. Acho bom, ter barba branca, cabelo branco e ser tratado por jovem [risos]. E a carreira é a percepção dos outros e não a minha. A imprensa brasileira valoriza muito o reconhecimento de fora. Nesse sentido, a história da Granta e das traduções para fora me valorizam muito. Eu não tenho nada contra. Mas continuo escrevendo do mesmo jeito de antes.