A crítica da inteligência livre
22 de novembro de 2005Para surpesa dos muitos pesquisadores que se dedicam a traçar o percurso de Walter Benjamin antes de sua morte em 1940, foram encontrados no que é chamado de "Arquivo Especial", em Moscou, manuscritos originais, recortes de jornal e documentos pessoais do pensador, que se suicidou na fontreira franco-espanhola ao fugir do nazismo.
Acreditava-se até agora que todo o material recolhido no último apartamento parisiense de Benjamin, em junho de 1940, teria sido confiscado pela Gestapo quando a Alemanha ocupou a França e levado pelo Exército soviético após o fim da Segunda Guerra.
Anos mais tarde, em 1957, este material teria sido entregue pelas autoridades soviéticas à ex-Alemanha Oriental. Apenas recortes de jornais e revistas, constava anteriormente, teriam permanecido em Moscou. Somente agora, décadas depois, é que foi descoberta num arquivo russo uma série de documentos que pertenceram a Benjamin, reunidos em pastas intituladas "Periódicos".
Adorno e Brecht
Ao invés das meras reproduções de jornais da época, como acreditava-se anteriormente, foram encontradas nessas pastas aproximadamente 200 páginas escritas pelo próprio Walter Benjamin: anotações pessoais, rascunhos de textos que viriam a ser publicados posteriormente, esboços de cartas.
Além disso, correspondências recebidas pelo pensador e textos alheios pertencentes à sua biblioteca pessoal. Entre estes, por exempo, Der Schatz der Indianer-Joe (O Tesouro do Índio Joe), de Theodor W. Adorno, e Furcht und Elend des Dritten Reiches (Terror e Miséria no Terceiro Reich), de Berthold Brecht.
Ex-acervo da KGB
O arquivo que misteriosamente abrigou até agora todo esse material inédito pertenceu à KGB (a polícia política soviética), tendo se tornado posteriormente parte de um arquivo militar russo.
O material relacionado a Walter Benjamin esteve incluído na coleção Documentos do Nazismo, composta por pastas confiscadas na Alemanha pelas Forças Armadas soviéticas no fim da Segunda Guerra.
"Arquivos especiais"
Segundo a revista literária Mittelweg 36 – uma publicação do Instituto de Pesquisa Social de Hamburgo –, acontece desde 1991 na Rússia uma verdadeira "revolução de arquivos". Documentos mantidos por décadas sob os auspícios do serviço secreto foram chegando aos poucos ao conhecimento da opinião pública.
Entre os chamados "arquivos especiais", estão documentos relacionados a escritores alemães no exílio, bem como o material pertencente a nazistas como Joseph Goebbels, além de documentos relacionados a organizações de judeus.
A última casa
Desses arquivos faz parte tudo "o que Walter Benjamin deixou em seu apartamento de Paris, em junho de 1940, antes de seguir em fuga dos nazistas", observam Reinhard Müller e Erdmut Wizisla, autores do texto Crítica da Inteligência Livre, publicado na última edição da revista Mittelweg 36.
De acordo com informações dos dois pesquisadores, Benjamin sempre guardou seus manuscritos e textos impressos com extremo cuidado. Nos meses que se seguiram à sua saída da Alemanha, em 1933, ele conseguiu fazer com que a maior parte de seu arquivo pessoal fosse retirada do país.
Muito do que se conhece hoje da obra do filósofo ficou guardado com pessoas que mantinham com ele ligações pessoais, como Gershom Scholem, Theodor W. Adorno, Hannah Arendt, Berthold Brecht ou a própria irmã Dora Sophie.
Legado preservado por amigos
Ao deixar em junho de 1940 o apartamento localizado à rua Dombasle 10, em Paris, Benjamin levou consigo um bom volume de manuscritos e rascunhos. Estes, após sua morte, foram enviados a Adorno, em respeito a um pedido do próprio Benjamin. Outra parte do legado do filósofo e ensaísta ficou sob os cuidados de Georges Bataille, à época funcionário da Biblioteca Nacional, na capital francesa.
França, Alemanha nazista e União Soviética
No apartamento parisiense, porém, ficaram alguns esboços de programas radiofônicos escritos por Benjamin, anotações diversas, listas de endereços, contratos, fotos, nomes de publicações e uma série de correspondências pessoais. O material que, depois de passar pelas mãos dos nazistas, foi parar nos arquivos secretos soviéticos.
Grande parte desse material foi devolvida ao Arquivo Central de Potsdam, na ex-Alemanha Oriental, no ano de 1957, de onde foi transferido para a Academia das Artes de Berlim Oriental, em 1972. Em 1996, esses documentos foram parar no Arquivo Theodor W. Adorno, em Frankfurt.
Acervo berlinense incompleto
A grande surpresa recente foi saber que esse material conhecido como "acervo berlinense" da obra de Walter Benjamin não estava completo e que o que ficou "esquecido" em Moscou não se resumia apenas a recortes de jornal, mas continha manuscritos do próprio Benjamin e de outros autores.
"São poucos os livros encontrados em Moscou, mas eles mostram que Benjamim manteve uma relação especial com os autores dessas obras, entre eles André Breton e André Gide", observam os pesquisadores Müller e Wizisla.
Há entre o material ainda detalhes interessantes, como uma observação em carta a respeito de O Muro, de Jean-Paul Sartre. Benjamin fez anotações sobre uma resenha do livro publicada pelo jornal Le Figaro, em 5 de março de 1939. "O que mostra que ele realmente tomou conhecimento da obra de Sartre", afirmam os pesquisadores alemães.
Correspondência com Anna Seghers
Além disso, há no material encontrado em Moscou trechos dos manuscritos originais de A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica. Entre os rascunhos de cartas – preservados apenas porque Benjamin usava o verso de seus próprios manuscritos para esboçar suas correspondências – estão várias endereçadas a Theodor W. Adorno, Max Horkheimer ou à irmã Dora, entre outros.
"A maioria desses rascunhos remete a cartas de Benjamim já publicadas, exceto a correspondência com Anna Seghers, com quem ele manteve contato em Paris", relata a publicação Mittelweg 36. Só agora veio à tona que o pensador resenhou o romance Die Rettung (A Salvação), de Seghers, em 1937.
Inventário da percepção crítica
O significado do material encontrado está também no ineditismo de certas observações de Benjamim em relação ao êxodo dos intelectuais alemães no ano de 1933 e à "falta de qualquer referência que prove a ligação do anti-semitismo na década de 30 com o anterior".
E no "inventário da percepção crítica" presente nas anotações de Benjamin, como definem os pesquisadores Müller e Wizisla, bem como nos conflitos com o editor francês Ferdinand Lion, apontado por Benjamin como alguém que tentava manipular seus textos "não sem perfídia".
"Contra o pragmatismo e o positivismo"
"Além dos trechos esparsos de textos e das anotações feitas por Benjamin de próprio punho, em parte apenas em pequenas tirinhas de papel", descrevem os pesquisadores, "há uma lista de conceitos e requisições – ao lado de Requisitorium gegen die freie Intelligenz (Requisição contra a inteligência livre), há o Requisitorium gegen den Pragmatismus (Requisição contra o pragmatismo) e Requisitorium gegen den Positivismus (Requisição contra o positivismo)".
Cópias do material encontrado em Moscou estão disponíveis ao público no Arquivo Walter Benjamin, em Berlim, onde os pesquisadores esperam das autoridades russas uma resposta a respeito de um possível envio desses originais à Alemanha.