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"Não considero que estamos em paz", avalia José Patrocínio

30 de março de 2012

Ainda é preciso construir a paz em Angola, considera José Patrocínio (na foto, com os braços erguidos). Ao falar à DW África, o ativista critica o favoritismo, fala em rever a Constituição e sonha com um país mais justo.

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José Patrocínio, ativista da organização de defesa dos direitos humanos Omunga
José Patrocínio, ativista da organização de defesa dos direitos humanos OmungaFoto: DW / Sul d'Angola

Há dez anos, foi assinado o acordo de paz em Angola. Para as armas, significou o silêncio. Para a população, a voz. Foi uma década de conquistas: eleições e uma nova Constituição. Mas ainda há que se construir a paz e avançar no âmbito social.

Segundo dados das Nações Unidas, Angola tem um desenvolvimento humano ao nível do Madagáscar, apesar de ter um PIB per capta cinco vezes mais alto que o do país insular. Para o coordenador da ONG Omunga, José Patrocínio, a explicação está na falta de vontade política e na má distribuição dos recursos económicos. Na entrevista a seguir, ele afirma que as conquistas são méritos do povo angolano e devem ser revertidas para o bem estar comum.

DW África: Quais são, no seu ponto de vista, as maiores conquistas nestes dez anos de paz?

Para José Patrocínio, assinatura do acordo de paz (foto) trouxe o calar das armas, mas não a paz efetiva
Para José Patrocínio, assinatura do acordo de paz (foto) trouxe o calar das armas, mas não a paz efetivaFoto: picture-alliance/dpa/dpaweb

José Patrocínio: Não considero que estamos a viver em paz. Considero, sim, que estamos a viver dez anos de calar das armas. Talvez esta seja a maior conquista, precisamente as armas terem se calado, a guerra ter terminado. Mas, obviamente, é necessário continuar a construir a paz.

DW África: Por que considera que não são dez anos de paz, mas dez anos do calar das armas?

JP: Porque continuamos com a intolerância política e com os ódios guardados dentro dos nossos corações. Não se fez um processo de pacificação, não se fez um processo de transição. Acredito que o processo constituinte poderia ser esse processo de pacificação e reunificação, mas não foi utilizado nesse sentido, já que o resultado é esse que estamos a ter agora.

DW África: A seguir à paz, Angola viveu um dos maiores crescimentos económicos entre todos os países do mundo, atingindo um crescimento de mais de 20%, em 2005 e em 2007. Apesar disso, muitos angolanos continuam a viver na pobreza. Como se explica esta falta do "dividendo da paz" para muitos?

JP: A questão fundamental está na vontade política, nas estratégias definidas, nas políticas traçadas e no sentido de justiça. Isso reverte-se porque precisamente esse calar das armas tem favorecido a vida de alguns cidadãos angolanos, mas isso em prejuízo da maioria.

Tem-se dado um enfoque à questão económica, mas essa questão económica apenas beneficia um grupo específico, ligado ao poder - seja o poder político, económico ou militar - e, portanto, eles têm ganho com o crescimento. Mas a maior parte da população obviamente não obtém benefícios. Não há um investimento do crescimento económico no bem social, no bem de todos.

DW África: Segundo dados das Nações Unidas, Angola tem um desenvolvimento humano ao nível do Madagáscar. Apesar de ter um PIB per capita cinco vezes mais alto. O que se passa?

Em Angola, os recursos não são usados na melhoria da qualidade de vida dos próprios cidadãos, diz José Patrocínio
Em Angola, os recursos não são usados na melhoria da qualidade de vida dos próprios cidadãos, diz José PatrocínioFoto: AP

JP: Os recursos que Angola ganha com a exportação de algumas matérias-primas, nomeadamente o petróleo, não são usados na melhoria da qualidade de vida dos próprios cidadãos. É revertido apenas no benefício da qualidade de vida de algumas das pessoas que cresceram a sua qualidade de vida - e muito mesmo.

DW África: Os recursos naturais que abundam em Angola, como o petróleo e os diamantes, são uma bênção ou uma maldição para o país?

JP: Obviamente que os recursos naturais nunca são uma maldição, são sempre uma bênção mesmo que não sejam geridos para o bem de todos. É mais importante termos petróleo do que não termos.

O que é importante agora é gerirmos esses recursos em benefício de todos. Das reservas de petróleo que temos, trazemos bens sociais nos setores da saúde, da educação e de todos os bens que as pessoas precisam para ter uma qualidade de vida digna.

DW África: Se compara o estado da liberdade antes do fim da guerra e a realidade nos dias atuais, qual é o seu balanço?

Mesmo com obstáculos, direito a manifestações e liberdade de expressão são conquistas do pós-guerra
Mesmo com obstáculos, direito a manifestações e liberdade de expressão são conquistas do pós-guerraFoto: DW

JP: Há mudanças e para o positivo. Portanto, só o calar das armas permite já às pessoas melhorias e certas condições. Poderem circular e se comunicar. As pessoas terem acesso a uma série de tecnologias que não tinham antes, no tempo da guerra. As pessoas terem mais possibilidades de se manifestar, de expressar as suas opiniões e de participar, mesmo que encontrem muitos obstáculos.

Mas há, com o calar das armas, muito mais conquistas e muito mais abertura. Não porque o poder nos facilita esta abertura, mas à custa das conquistas das lutas dos cidadãos.

DW África: Para os próximos dez anos de Angola, qual seria o seu desejo?

JP: Uma Angola mais justa para todos. Uma Angola em que as diferenças entre as pessoas seja a menor possível. Não estamos a dizer para acabar com os ricos, mas que haja menos diferença entre as pessoas mais ricas e as pessoas mais pobres.

Que todas as pessoas tenham acesso aos serviços de saúde e de educação, aos serviços sociais. Que tenham acesso ao respeito à sua dignidade, possam participar livremente e manifestar-se livremente. Possam ter acesso à informação e que os jornais não estejam controlados, mas sim livres.

Enfim, acredito num país justo e democrático, em que a Constituição deverá ser revista. Que voltemos a ter uma forma de eleição do presidente diferente daquela que consta na atual Constituição e que os cidadãos vão ter mais paz e participação.

Autor: Nelson Sul D'Angola (Benguela)
Edição: Cris Vieira/Renate Krieger