"Democracia iliberal" poderia emergir na nova Líbia, diz especialista
24 de outubro de 2011Paulo Gorjão é investigador e diretor do Instituto Português de Relações Internacionais e Segurança. O IPRIS é uma organização não governamental com sede em Lisboa.
DW: Com a morte de Mouammar Kadhafi começam os verdadeiros desafios políticos para o Conselho Nacional de Transição (CNT). Estará a nova liderança líbia à altura dos desafios? Ou começa desacreditada pelas mal esclarecidas circunstâncias da morte de Kadhafi?
Paulo Gorjão: Era possível que pudesse acontecer o que aconteceu e, portanto, não se pode dizer que tenha repercussões do ponto de vista do contexto futuro. O que é necessário é que o CNT esteja ao nível das circunstâncias, do ponto de vista de definir uma orientação, que seja uma orientação inclusiva, em que haja um processo de reconciliação, em que se prepare todo o processo de transição política, a nomeação de uma Assembleia Constituinte, a definição de uma nova Constituição etc. Portanto, nada do que aconteceu até agora determina o futuro, do ponto de vista positivo ou negativo.
Nós temos alguns indicadores de que a nova liderança tem consciência destes problemas e tem sensibilidade. O CNT tem condições - quer do ponto de vista interno quer do ponto de vista externo (do apoio da União Europeia que será inevitável e das Nações Unidas) - para um processo de transição com êxito.
Evidentemente que não será fácil. A Líbia também tem condições difíceis, por outro lado, a nível interno – o fato de não haver experiência político-partidária em grande parte da população, o fato de não existirem partidos políticos etc.
Mas em nada está escrito que o processo de transição, sendo difícil, não seja possível.
DW: Se tivesse que definir três prioridades para a nova liderança, quais seriam?
PG: Seriam precisamente a inclusão, a reconciliação e a transição para a democracia. São, a meu ver, os três fatores cruciais. Portanto, encontrar soluções políticas que sejam inclusivas, do ponto de vista da sociedade líbia, iniciar um processo de reconciliação (tendo em conta o que se passou num passado recente, mas também a médio prazo e num passado mais distante).
E, por outro lado, dar início a todo um processo de transição para a democracia com um processo de recenseamento da população, constituição de cadernos eleitorais, marcação de eleições constituintes, e posteriormente, a elaboração de uma nova Constituição, novas eleições, a constituição de um novo governo legítimo e democrático. A meu ver, o futuro da Líbia vai jogar-se neste triângulo.
DW: A Líbia livre tenciona adotar a lei islâmica Sharia como fonte de legislação. Como é que pode ser interpretada esta declaração de intenção?
PG: Vamos ver se isso depois se materializa, porque essas decisões terão que ser legitimamente tomadas por quem detém o poder, a seu tempo, um poder democrático.
Quem pensa que nós vamos ter no Magrebe e, eventualmente, no Médio Oriente, processos de transição fáceis e que vamos instituir democracias liberais, tais como temos no Ocidente, desiluda-se. Não é isso que, à partida, em muitos desses países vai acontecer.
Eu acho que andamos aqui ainda um pouco à procura do que é que pode servir de modelo para a Líbia, para a Tunísia, em termos de regime democrático. Olha-se a Turquia, para alguns observadores é, eventualmente, uma referência que estes países deverão ter. Mas evidentemente, nestes países há um peso da sua religião e dos valores associados que, por vezes, do nosso ponto de vista, colide com os valores democráticos.
Se nós numa primeira fase (e estou a pensar nos próximos dez anos) tivermos qualquer coisa semelhante ao que [o jornalista e escritor norte-americano] Fareed Zakaria chamou de "democracias iliberais", diria que já não é mau. Mas, evidentemente, em todos estes países os processos de transição e de consolidação democrática vão levar tempo.
DW: Quer dizer, portanto, que se corre o risco de haver uma radicalização islâmica?
PG: Sim, corre-se o risco de haver a emergência, não de democracias liberais tais como nós as entendemos e gostaríamos que ocorressem, mas a possibilidade de existirem regimes híbridos (regimes com traços de regimes democráticos e com outros traços que nós associamos aos regimes autoritários) e, portanto, com limitações aos direitos, liberdades e garantias dos seus cidadãos. Há essa hipótese, mas não se pode dizer que esteja pré-determinada.
Há um contexto cultural e religioso que tolera, eventualmente, soluções no âmbito do regime, opções políticas que nós consideramos que não são compatíveis com um regime democrático.
Portanto, é possível que em alguns desses países possam emergir regimes de natureza híbrida, que não são regimes liberais puros e duros.
DW: Com a “libertação da Líbia” [conforme palavras do CNT] não será agora altura de a comunidade internacional se centrar também na Síria? Será Assad o senhor que se segue?
PG: Esse é o receio que a Síria tem. De alguma forma, o impasse militar na Líbia funcionava como um tampão, do ponto de vista sírio, em que a atenção da comunidade internacional estava focada na Líbia. E enquanto estivesse focada na Líbia não havia tanto espaço para, a seguir, se transferir para a Síria.
Com a resolução da situação militar na Líbia, evidentemente que os holofotes se vão dirigir para a Síria. Acontece que, agora, as circunstâncias são diferentes. A começar logo pelo fato de a comunidade internacional não ter grande apetência para intervir depois de ter auxiliado o CNT na queda do regime [na Líbia]. Não há especial apetência por parte da comunidade internacional para replicar o processo na Síria.
Acresce a isso o fato de alguns membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas (nomeadamente membros permanentes com direito de veto) sentirem que foram traídos no processo líbio e que foi feita uma leitura extensiva do mandato que as resoluções de 1970 e 1973 permitiam à comunidade internacional. E portanto, não vai haver no caso da Síria, muito provavelmente, uma resolução semelhante à que houve na Líbia e que dê espaço de manobra à comunidade internacional para iniciar uma política de mudança de regime.
Portanto, tudo indica que, podendo ser possível, o regime sírio também caia; mas não cairá seguramente com um processo que seja uma réplica daquilo que aconteceu na Líbia.
Autora: Helena de Gouveia
Edição: Glória Sousa / Renate Krieger