Único filme alemão em Cannes mostra lado obscuro do fanatismo religioso
23 de maio de 2013Raios de sol brilhantes e uma natureza romântica – o início idílico do filme só é quebrado pelas duras batidas sonoras que acompanham a imagem. Um jovem louro e magro é batizado num lago. Tore é um chamado Jesus freak – ouve música punk, usa uma jaqueta de couro surrada e vive com outros crentes outsiders numa espécie de comunidade cristã. Em seu universo, Deus é "cool" e um penteado moicano não se opõem ao terço que ele usa no pescoço.
Quando percebe que nem todos os fiéis vivem de forma tão consequente quanto ele, o ingênuo Tore decide então abandonar a comunidade. Ele trava amizade com o questionável Benno e se muda simplesmente para a família do novo amigo num Schrebergarten (parcela de terreno público que os alemães alugam para cultivar seus jardins). Benno passa a maltratar Tore. Inicialmente, a comida é racionada. Depois, vêm os socos.
O jovem completamente negligenciado começa, então, a se prostituir para trazer dinheiro para a família. Tore suporta as humilhações como prova de Deus, como ato do amor ao próximo. E é precisamente o sacrifício ilimitado que torna o filme tão perturbador.
"A realidade foi o modelo", diz a diretora Katrin Gebbe.
Em 2009, um casal manteve preso durante meses num porão um menino deficiente mental, torturando-o até a morte. A cineasta de 30 anos havia lido a história num jornal. Tinha acabado de se formar na Escola de Mídia de Hamburgo e estava à procura de material para seu primeiro longa-metragem.
Ao lado da produtora Verena Graefe-Höft, que também estudou em Hamburgo, Gebbe levou à frente o projeto apesar dos obstáculos. Um filme sem uma história clássica de amor, além do tema difícil e de atores relativamente desconhecidos. O fracasso parecia ser inevitável.
Mas a produção de baixo custo foi convidada para participar neste ano de Cannes, um dos mais renomados festivais de cinema do mundo. Além disso, como único filme alemão no programa oficial.
"Isto é naturalmente fantástico, principalmente para mim como uma jovem cineasta", afirmou Katrin Gebbe com muito orgulho. "É como ganhar na loteria."
Espaço criativo
A mostra paralela Un Certain Regard (um certo olhar), em que Tore tanzt foi selecionado, é considerada um espaço criativo. Ali são mostrados filmes pequenos, mas bastante apurados e para além do gosto da grande massa. Experimentos que exploram novas formas de cinema, que ousam na temática. Ousadias cinematográficas feitas não somente por novatos, mas também por cineastas experientes e premiados.
Por exemplo, The Bling Ring, filme de Sofia Coppola, está passando nessa seção e não na competição oficial. Também sua história se baseia em fatos verídicos. O filme conta a história de meninas que invadem as casas de diversas estrelas em Beverly Hills e depois são capturadas. Neste ano na Costa Azul, é a realidade que está proporcionando as histórias mais emocionantes.
O trabalho de direção de Katrin Gebbes terá de se impor perante 17 outros filmes na mostra Un Certain Regard. O filme cativa principalmente com uma linguagem visual clara e uma narrativa sutil.
"É claro que se trata também de violência", disse a jovem cineasta. "Mas essa brutalidade não está embutida num gênero, como, por exemplo, num filme de terror. Ela resulta do dia a dia. E isso torna tudo intenso."
A figura de um cristão ingênuo poderia facilmente se transformar numa caricatura. Mas Katrin Gebbe soube evitar tanto a heroicização da fé quanto a condenação do mal. Em vez disso, ela torna visíveis, camada após camada, as dúvidas e inseguranças – de ambos os lados. São imagens que ferem, que reverberam em sua pujança. E que possuem um sentimento de verdade dificilmente encontrado no hype glamoroso das estrelas na Croisette.