Xamanismo e high tech
19 de abril de 2010Quantos "Amazonas" existem? Que mente é capaz de abarcar a complexidade natural, histórica, social, humana dessa paisagem? A que artifícios e metáforas é preciso apelar para compreender – e expressar, a partir do "mundo civilizado" – o que seja a realidade amazônica?
Até certo ponto, a floresta dos pais intelectuais de Amazonas – Teatro música em três partes continua sendo a do visionário Fitzcarraldo. Não por mero acaso, durante a apresentação do projeto à imprensa, no Centro de Arte e Tecnologia de Mídia (ZKM) de Karlsruhe, foram recorrentes as comparações da produção a um gigantesco barco a vapor.
Quatro anos de preparação
Difícil conceber uma lista mais ilustre de parceiros: ao lado do ZKM, o Instituto Goethe, o festival internacional de teatro-música contemporâneo Bienal de Munique, o Sesc de São Paulo, o Teatro Nacional de São Carlos em Lisboa, e a Hutukara Fundação Yanomami; além das emissoras Arte e Deutschlandradio. O patrocínio é do governo alemão, da União Europeia e do Deutsche Bank, entre outros.
A ideia de "fazer algo sobre o Amazonas" partiu, já em 2006, do diretor artístico da Bienal de Munique, Peter Ruzicka. Citando o filósofo Peter Sloterdijk, ele evoca a "dor amazônica". O rio, explica, "representa a principal artéria e sistema nervoso central de um espaço vital biológico e cultural no qual seres humanos encontraram sentido e felicidade como parte da natureza. O paraíso de riqueza natural e suposta primordialidade despertou nos europeus que o viram o típico sentimento duplo: admiração e concupiscência, espanto e sede (de bens e poder)".
O diretor do festival de Munique – no qual o projeto estreará, em 8 de maio de 2010 – alerta: as consequências da conquista pelos brancos "hoje desencadeiam alarme. A Amazônia é uma região nuclear para o destino global, ecológica e culturalmente". Depois de Munique, Amazonas – Teatro música em três partes será apresentado em Rotterdam, São Paulo e Lisboa.
Nossos parceiros contemporâneos
Na concepção original, a peça se comporia de apenas duas partes, representando "o olhar de fora" – realizado musicalmente por Klaus Schedl – versus "o olhar de dentro" – confiado ao brasileiro Tato Taborda. Uma pretensão impossível, observa o compositor, já que culturalmente sua visão jamais seria a de um nativo do Amazonas.
Em outras palavras: nem todo brasileiro é automaticamente índio.
Esse equívoco básico chama a atenção para dois perigos inerentes a um projeto tão vasto: o da ingenuidade eurocêntrica e o de (mais um) missionarismo. E confirma a necessidade de recorrer a quem conheça a fundo o universo em questão. Segundo Taborda, o antropólogo francês Bruce Albert é um inestimável "tradutor", não só do idioma como da cultura e visão de mundo dos yanomami, com os quais ele trabalha há mais de 35 anos.
A outra coluna artístico-teórica é o professor Laymert Garcia dos Santos, da Universidade de Campinas. O filósofo e sociólogo, que há anos se engaja politicamente pelos nativos do Amazonas, registra uma guinada essencial de concepção: em vez de se criar mais uma obra sobre os índios, criar uma com eles. A partir desse momento, os yanomami deixaram de ser o elemento exótico, para se tornar "parceiros contemporâneos" do projeto, participando de seu desenvolvimento conceptual. Como porta-voz e principal representante dos nativos dentro de Amazonas está o xamã Davi Kopenawa.
Tilt e Queda do céu
Nas duas primeiras partes, o libreto é de Roland Quitt, direção de cena de Michael Scheidl.
A primeira, Tilt, é agora "o olhar de longe". Seu texto se baseia em The discoverie of the large, rich and bewtiful empire of Guiana, de sir Walter Raleigh, que partiu em 1595, com 40 homens, para explorar o Rio Orinoco. Raleigh estimava que o mítico El Dorado dos espanhóis se localizasse próximo ao atual território dos yanomami. A partir da narrativa dessa expedição, Tilt (a mensagem final dos antigos jogos de fliperama) antecipa o raciocínio europeu que levará à colonização e à mentalidade de latifúndio.
O título A queda do céu – escolhido para a parte dois ("o olhar de perto") – foi tirado de um livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert. No modelo mítico dos yanomami, essa queda seria o resultado final da orgia de ganância e destruição por parte do homem branco. O embate entre o xamã e um desses "seres que lutam por ideias abstratas e têm uma paixão por objetos inúteis" se passa num labirinto sonorizado por 24 alto-falantes, metáfora para a floresta e para o cérebro do feiticeiro indígena.
Em sua pesquisa para o projeto multimídia teuto-brasileiro, Tato Taborda passou duas semanas entre os yanomami. Porém há anos ele já vinha se ocupando da "polifonia da selva" – o acordo tático entre as espécies animais que, para reproduzir-se, dependem de que seu canto seja ouvido. É o que o compositor denomina "orquestração bioacústica".
Ao lado de cantores líricos e "artistas vocais", dois trompetes, duas trompas, um trombone, uma tuba e percussão, Taborda emprega em sua parte 12 instrumentos de sopro – reproduções de originais yanomami –, assim como samples das vozes dos indígenas.
"Na esperança da efetividade..."
Para quem não tem presente o filme de Werner Herzog: Fitzcarraldo é um europeu excêntrico (interpretado pelo indomável Klaus Kinski), cuja ambição é construir uma casa de ópera no Alto Amazonas. Para realizar tal visão, ele não poupa recursos, esforços, nem as vidas alheias. Um clímax nessa odisseia megalomaníaca, e fadada ao desastre, é o transporte – morro acima e morro abaixo, arrastado pelos índios – de um barco fluvial de mais de 300 toneladas, que acabará por naufragar.
Visão e ambição é o que não falta aos mentores de Amazonas. Felizmente, neste caso, assessoradas por know-how e meios técnicos e financeiros bem sólidos.
Joachim Bernauer, curador do projeto e diretor do Instituto Goethe de Lisboa assegura que "nenhum espectador deixará o teatro com a mesma consciência sobre a Amazônia com que entrou". Já Ruzicka promete, "caso Amazonas seja bem sucedido", nada menos do que uma redefinição do gênero operístico. Mais ainda: tratar-se-á do primeiro espécime do verdadeiro teatro-música do século 21.
O chefe da Bienal de Munique é apoiado em sua promessa por Peter Weibel, que dirige o ZKM. Primeiro a evocar a metáfora do navio a vapor durante a coletiva de imprensa, ele é pessoalmente responsável pela concepção e realização da terceira parte do projeto: Conferência do Amazonas – Na esperança da efetividade de um método racional para resolver o problema climático.
A situação básica desse grand finale, é uma conferência sobre o futuro do mundo, após o céu já ter caído. Mais do que os artistas envolvidos, aqui a protagonista é a tecnologia: a mesa de conferência é um misto de instrumento musical eletrônico-acústico e unidade de vídeo-mix. Através de projeções sincronizadas por uma bateria de computadores, as escadas assimétricas do cenário se metamorfoseiam magicamente, como verdadeiros camaleões cênicos.
A parte musical, desenvolvida por Ludger Brümmer, é concebida como uma "composição molecular". Aqui, os dados sobre a floresta amazônica são sonoramente decodificados e elaborados segundo as regras do Game of life, um jogo de computador que simula processos de proliferação e extinção.
Os exemplos musicais apresentados tiveram recepção menos do que entusiástica durante a coletiva. Mas Weibel já se antecipara a eventuais ressalvas estéticas: "Se isso soa bem ou mal, é uma outra questão. Sinceramente, não é o que me interessa. Meu interesse é apenas encontrar uma outra música". Para o diretor do centro de pesquisa e produção artística, a ópera é e sempre foi, em seus melhores momentos, sobretudo um gênero multimídia.
Certeza do naufrágio
O exótico tem mil caras. E para determinados espectadores foi certamente um choque cultural o modo – ao mesmo tempo sumário e simpático – como o curador Bernauer definiu suas expectativas quanto ao projeto teatro-musical. "Um navio a vapor como o nosso só pode afundar. Mas continuamos trabalhando para, na estreia, afundarmos com nível. E para que o naufrágio seja interessante para quem o assistir."
Todo esse fatalismo pode até atrair azar, diria algum latino-americano. Mas, quem sabe, não passe de um estranho ritual. Como o dos atores alemães, que se desejam "pescoço e perna quebrada", antes do início de cada espetáculo. Só para afastar a inveja mútua e trazer sorte, é claro.
Autor: Augusto Valente
Revisão: Simone Lopes