"Nós, mulheres, não tivemos como expressar nossa voz na arena democrática. Fomos silenciadas!". A frase foi dita pela ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber em seu histórico voto pela descriminalização do aborto no Brasil, apresentado na sexta-feira semana passada.
A ministra se referiu claramente a um fenômeno inaceitável em 2023: a falta de representatividade feminina nas esferas de poder. E ela sabe muito bem do que está falando. Rosa, que se aposenta por completar 75 anos, a idade máxima permitida no STF, tem apenas uma colega do sexo feminino, Cármen Lúcia. Com sua aposentadoria, Cármen pode se tornar a única representante das mulheres junto a dez ministros homens. Absurdo.
É muito simbólico e bonito que a questão do aborto, negligenciada por tantos anos no Brasil (sempre aparece algum homem para falar que "não é a hora certa de tratar da questão", enquanto mulheres morrem) tenha sido colocada para votação por Rosa Weber em seus últimos momentos como presidente da Suprema Corte. Na ocasião, o ministro Luís Roberto Barroso pediu "destaque", o que significa que a votação foi interrompida e será concluída presencialmente (ainda não sabemos quando).
Um homem teria colocado a questão para votação? Acredito que não. Tem que ser mulher para entender a urgência da causa. Há quantos anos homens (que ocupam a maioria esmagadora dos espaços de poder), deixam essa questão de lado, como se esse fosse um assunto "polêmico demais" ou não prioritário?
Nós, mulheres, sabemos mais do que ninguém que o aborto é uma questão de saúde pública urgente, que não pode ser mais postergada. O que pode ser mais urgente do que proteger a vida de mulheres, em especial das pretas e pobres, que pertencem à parcela mais vulnerável da população?
Ainda existem pessoas (muitas, infelizmente) que acham que é "mimimi" quando repetimos que precisamos de mulheres ocupando cargos de poder (assim como negros, indígenas, deficientes e LGBTQ+). Não exigimos isso só porque existimos e somos cidadãs (no caso das mulheres somos 51,1% da população brasileira), mas também porque trataremos melhor e com a urgência necessária assuntos que dizem respeito a nós e às nossas colegas.
É urgente mulher negra no STF
Há meses, entidades de mulheres negras fazem uma campanha para que o presidente Lula indique uma mulher negra para a vaga de Rosa Weber no STF. A histórica votação do aborto feita pela ministra explica didaticamente por que precisamos de uma mulher negra na Suprema Corte.
Só para dar um exemplo: segundo levantamento feito pelo site Número e Gênero, as tentativas de aborto inseguro causaram a morte de 483 mulheres em hospitais da rede pública entre 2021 e 2022. Mulheres pardas e negras correm duas vezes mais riscos do que brancas.
E o aborto é só um dos casos injustos enfrentados por elas, que são também chefes de família na maioria dos lares mais pobres do Brasil. De acordo com o IBGE, 56% dos brasileiros se identificam como pretos e pardos e quase um terço da população é de mulheres negras. Em toda sua história, o STF só teve três mulheres ministras, todas elas brancas.
Classe média faz aborto seguro
Vamos ser sinceras aqui. Quem é branca e de classe média, moradora de grandes cidades, consegue fazer abortos seguros com facilidade no Brasil. É só uma questão de ter dinheiro e informação sobre as clínicas clandestinas que atuam no país.
Quando eu estava na faculdade, a UFRJ, no Rio de Janeiro, todo mundo sabia onde ficava uma clínica na zona sul que efetuava o procedimento. Muitas de nós fizeram abortos lá. E, apesar de todas terem corrido risco de serem presas (a mulher que faz aborto ainda é autora de um crime), todas nós sobrevivemos.
Não é possível que brancos engravatados sejam os responsáveis por decidir essa questão. Inclusive porque muitos homens simplesmente desaparecem quando suas parceiras sofrem uma gestação indesejada. Segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, existem mais de 11 milhões de mães solo no Brasil. Entre 2012 e 2022, 90% das mulheres que se tornaram mães solo eram pretas.
Além de todas essas razões para que o aborto seja descriminalizado, vale olhar também para o mundo, que avança no caso do direito reprodutivo das mulheres. Inclusive entre nossos vizinhos da América Latina, católica e dogmática. Em 2020, as hermanas argentinas conseguiram que o aborto fosse liberado, finalmente. Já passou da hora do Brasil se juntar aos países que tratam mulheres com dignidade, ao invés de deixá-las morrer por não ter dinheiro para pagar um aborto ilegal de "alto nível" e tentar interromper a gravidez de forma arriscada.
Aos radicais contrários à descriminalização do aborto, um toque: porque mais que vocês sejam contra, mulheres nunca deixaram de fazer aborto e não deixarão. Isso não depende da gente querer ou não. O que podemos ter agora é a chance de ver mulheres fazerem o procedimento sem correr o risco de serem presas, ficarem muito doente, ou morrerem. É pela vida das mulheres.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.