Evocando Borges
16 de outubro de 2009
María Kodama esteve na Feira do Livro de Frankfurt, participando da apresentação da Argentina como país convidado à edição de 2010. Seu marido, o escritor Jorge Luis Borges (1899-1986), é uma figura de proa, encarnando a identidade argentina de raízes europeias.
Indagada sobre o possível traslado dos restos mortais do autor, de Genebra, onde faleceu, ao cemitério de La Recoleta, em Buenos Aires, Kodama queixou-se: os jornalistas sempre fazem as mesmas perguntas desde a morte de Borges, há 23 anos. Ela recordou que repousar em Genebra foi a última vontade do autor de O aleph, que, além do mais, "estava farto de ser maltratado pela esquerda argentina, como fora durante anos".
Posteriormente, com mais calma, a viúva explicou que, segundo seu marido, fazia mal à Argentina esse contínuo tráfico de cadáveres, que desde a época colonial "vão e vêm e trocam de lugar todo o tempo".
"Borges dizia que os italianos sabiam bem disso, pois Dante não morreu em Florença, onde nasceu, mas sim em Ravena, onde está enterrado. Através dos séculos, ninguém ousou contradizer isso, já que os italianos sabem que ficar deslocando cadáveres traz má sorte. De modo que a sorte da Argentina mudará quando aprenderem a respeitar os mortos."
Gostos musicais e ética
María Kodama é filha de uma uruguaia de origem alemã com um arquiteto japonês emigrado para a Argentina. Entre os corredores da feira, ela recordou os gostos musicais do gênio, a quem os Rolling Stones e Pink Floyd davam vitalidade.
"Essa música lhe transmitia uma força que o tango sentimental e chorão não o fazia sentir. Por isso gostava das milongas e dos tangos da velha guarda, pois eram alegres e transmitiam essa sensação que o tango argentino perdeu depois de Carlos Gardel."
Sobre o legado pessoal de Jorge Luis Borges, a viúva responde com uma declaração de amor. "O que mais amei e seguirei amando até o último dia de minha vida é que ele era um ser totalmente ético, que nunca se deixou subornar por nada nem ninguém. É o máximo que uma pessoa pode ser: não se trair a si mesma. Isso ele conseguiu, à custa de muitas coisas – mas conseguiu. Isso é o que adoro nele."
Amor pela língua alemã
Kodama afirma que, em geral, os sonhos eram a fonte de inspiração de Borges. E recorda que assim surgiu o poema Ein Traum (Um sonho), ditado pelo próprio Franz Kafka em um de seus sonhos. A viúva lembra que estavam nos Estados Unidos, "ele se levantou e disse que queria ditar-me algo".
O autor argentino, que sempre corrigia tudo, todo o tempo, a cada edição, jamais retocou essa poesia. Quando Kodama lhe perguntou por quê, respondeu, com graça, que não podia fazê-lo, até que Kafka "me diga que corrija, em outro sonho". Em seguida, evoca o afeto especial de seu marido pela língua alemã.
"Escreveu um poema lindíssimo ao idioma alemão, e sempre recordava que aprendera o alemão somente para ler Schopenhauer, quando estudava no Liceu Jean Clavin, em Genebra. Então comprou um dicionário e os poemas de Heinrich Heine. E me descrevia a alegria que sentiu ao poder ler e compreender, sem o dicionário, um poema de Heine."
Na Espanha, ele travou amizade com os grupos de vanguarda do ultraísmo. "Mas depois defenestrou todos os 'ismos', menos o expressionismo alemão, a que seguiu fiel toda a vida. Inclusive dedicou-lhe um ensaio em Outras inquisições, se bem me recordo. Também fez um trabalho de divulgação, traduzindo os poetas alemães para publicá-los na Espanha. Traduzir os poetas de uma língua a outra, isso se faz agora como algo natural. Borges sempre se adiantou a seu tempo em tudo o que fazia. E isso era maravilhoso."
Autor: Eva Usi (av)
Revisão: Roselaine Wandscheer