"É muito tempo sem resposta", diz mãe de Marielle
11 de março de 2021Não há um dia em que Marinete da Silva, de 69 anos, deixe de rezar o terço. Preferencialmente, pela manhã e com suas irmãs. Para a mãe de Marielle Franco, o ritual é questão de sobrevivência. "Perder filho é a pior coisa. E da maneira como eu perdi minha filha, é muito triste. Minha fé é tudo: minha base e meu equilíbrio estão nela. Tem horas que a gente fica sem força", diz.
No próximo domingo (14/03), o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco completará três anos. Até hoje, Marinete sente como se a filha fosse voltar de viagem a qualquer momento. "É praticamente sentir a presença dela a todo minuto e dizer assim: ‘Não, não é possível'", conta.
Na pandemia, Marinete viveu a angústia de ter o marido internado durante 14 dias por ter contraído a covid-19, em novembro. O isolamento social ainda tirou dela os abraços, tão caros a uma nordestina afetuosa. Mas nenhum sofrimento é maior que a dor da ausência de Marielle, agravada pela falta de respostas sobre quem mandou matar sua filha.
Até agora, a Polícia Civil do Rio prendeu dois suspeitos acusados de assassinar a vereadora e seu motorista, Anderson Gomes. São eles os policial militar reformado Ronnie Lessa e o ex-PM Elcio Queiroz, detidos em março de 2019. Em outubro do mesmo ano, outras quatro pessoas foram presas sob a acusação de ocultar armas usadas pela quadrilha de Lessa. Dentre eles, sua esposa e seu cunhado.
Marinete, que é advogada, reconhece avanços nas investigações e elogia a força-tarefa recém anunciada pelo Ministério Público do Rio para cuidar do caso. No entanto, embora admita a complexidade do crime, ela considera inaceitável que não haja uma elucidação passados três anos. "Três anos são muito tempo [...] Está mais do que na hora de ter uma resposta", critica.
Na entrevista a seguir, a mãe da vereadora comenta a forma como vem lidando com a ausência da filha e sua relação com a fé. Marinete analisa os rumos das investigações e o episódio em que o deputado federal Daniel Silveira, hoje preso, quebrou a placa com o nome de Marielle. Orgulhosa, a mãe fala ainda sobre a projeção internacional do legado da filha.
"Hoje, o mundo reverencia uma mulher negra e pobre do Brasil, que sai da periferia para defender as minorias e chega no topo. Mesmo sem o devido reconhecimento aqui no Brasil, ela teve lá fora", afirma.
DW Brasil: O que mudou na senhora, no seu jeito de ser, com o assassinato de sua filha?
Marinete Silva: Muda tudo, toda uma história de vida, de parir a Marielle, criar, deixar daquele tamanho e nunca imaginar que a gente pudesse passar por isso. A gente vê muito isso no quintal dos outros, mas nunca dentro da nossa casa. É muito complicado. Foi uma brutalidade muito grande. Quando eu imaginei que minha filha podia seguir com a vida no que ela pretendia, ao chegar naquele parlamento tão dignamente, com uma votação esplendorosa, a gente acaba passando por uma situação que mexe totalmente.
Na verdade, é o pedaço da vida de uma mãe que vai-se embora. Não tem como. É uma marca tão profunda que só mesmo quem passa sabe avaliar o que é perder uma filha, e da maneira como nós perdemos Marielle, com requintes de crueldade, em que ela não teve nenhuma defesa, nem ser levada para um hospital. Foi uma coisa tão bruta, tão ruim, que ela não teve nenhuma chance. Isso é o que dói mais na gente. Saber que alguém planejou aquilo tudo também é um dos pontos que me deixa todo dia muito triste.
Em que momentos a Marielle se faz mais presente em seus pensamentos?
A Marielle é muito presente. Eu troco o nome de todo mundo aqui várias vezes por dia, da Anielle, da Luyara, eu chamo a Marielle muito. Foi minha primeira filha. Eu a criei quase cinco anos sozinha, antes de a Anielle chegar. Ela tinha uma ligação muito grande conosco em todo o tempo. Era também uma mulher de muita fé, de missa dominical, que trazia a história dela muito presente em todas nós. Não tem um dia, nem um minuto em que eu não pense. Até porque tudo o que eu olho aqui, na Anielle, na minha casa, lembra a Marielle. Desde as fotos de bebê, todos os momentos da minha filha, então não tem como.
Em todos os segundos a gente pensa nela. É uma falta, um vazio surreal. Às vezes eu fico pensando: meu Deus, foi mesmo com a minha filha que aconteceu isso? Foi Marielle mesmo. O tempo vai passando, um ano, dois, e a gente cada vez mais se martirizando. É praticamente sentir a presença dela a todo minuto e dizer assim: "Não, não é possível". É como se Marielle tivesse viajando, em algum lugar. Mas é muito próximo da gente. Não tem como ser diferente, é uma ligação de mãe com filha, que a gente pensa todo dia. Ela está sempre muito presente e, ao mesmo tempo, distante.
Ainda hoje, passados três anos, a senhora tem essa sensação de que ela está viajando?
Nossa... Parece que ela vai chegar e gritar lá embaixo. Os vizinhos todos escutavam. Vai chegar já com calor, tirando a roupa, pedindo comida. A Marielle era exatamente isso. Para você ter uma ideia, eu escuto ela subir. Porque ela era muito grandona, com um pé "desse tamanho". Então, quando ela subia, eu já conhecia a passada dela. Quantas vezes eu já me peguei falando: "Marielle tá chegando". Ela é muito presente ainda.
A senhora é muito religiosa. Como sua fé a ajudou nesse tempo?
A minha família inteira vem de uma história católica muito grande, graças a Deus. São mulheres marianas que trazem Maria muito presente, porque sabem o quanto ela é exemplo, foi a primeira discípula que aceitou sua missão e passou por uma situação bem complicada. O filho dela também era um líder que foi morto. Ela teve aqueles momentos ainda perto dele, eu não tive essa oportunidade. Só estive com minha filha no dia anterior. Mas a minha fé tem me sustentado bastante. Todos os dias, rigorosamente, eu tenho que rezar meus terços, com minhas irmãs, para sobreviver, porque não é fácil. Perder filho é a pior coisa. E da maneira como eu perdi minha filha, é muito triste. Minha fé é tudo: minha base e meu equilíbrio estão nela. Tem horas que a gente fica sem força. Ultimamente, mais ainda, por tudo o que a gente tem vivido. Não tem nada de bom acontecendo.
É tudo muito difícil para nossa família, mutilada por uma barbárie tão grande. Quando você vem de algum tempo de dor, isso faz com que a fé só aumente. Senão, você não sobrevive. A Anielle e a Luyara estão sempre recebendo ataques em relação à minha filha pelo Twitter, um lugar de muito ódio. A gente sabe que ali as pessoas desabafam e jogam tudo para o ar, mesmo. Eu tive muitos momentos difíceis. O pai dela teve covid em novembro e ficou 14 dias internado. A gente teve que dobrar nossas orações. Por toda a história da criação, do que eu trago com as minhas filhas, tinha hora que eu dizia: "Puxa, por quê?" Não que eu seja melhor do que mãe nenhuma, porque tem muitas mães passando pela mesma situação que eu, e outras até mais trágicas, de crianças pequenas e tudo. A diferença na história da minha filha é aquilo ter sido planejado por alguém. Isso me faz ter muita tristeza e dor. Nossa, se eu não tivesse a minha fé, acho que não resistiria.
Em setembro de 2019, a senhora, seu marido e sua neta foram a Paris para a inauguração de um jardim que foi batizado com o nome da Marielle. Como foi ver a importância que ela ganhou fora do Brasil?
Isso é um reconhecimento do quanto a história da Marielle é grande e serve de exemplo de uma mulher forte, que se tornou um ícone no Brasil e no mundo. Todas as homenagens são muito importantes, desde uma flor que você recebe, mas aquela foi das mais bonitas que houve. Ter um monumento em Paris é ver que o legado da Marielle, a história, o que ela trazia naquele corpo todo, com várias pautas, faz com que as pessoas se identifiquem cada vez mais. O jardim está lindo, vai ter uma homenagem grande para ela lá no domingo. Foi muito gratificante para nós participar daquilo, tinham várias autoridades ali. Hoje, o mundo reverencia uma mulher negra e pobre do Brasil, que sai da periferia para defender as minorias e chega no topo. Mesmo sem o devido reconhecimento aqui no Brasil, ela teve lá fora. Cada vez mais a gente vê pessoas levando a história da Marielle, tendo identificação com ela e querendo que essa memória seja cada vez mais preservada no Brasil e no mundo.
O que a senhora pensa sobre o curso das investigações?
Nesses três anos, a gente teve alguns avanços. Tem essas duas pessoas presas e mais pessoas da família dele também. A gente precisa entender que se trata de um processo muito emblemático, que requer cuidados. Essas pessoas não abrem a boca para falar nada. Eu participei de audiências com eles, e eles não falaram, não vão falar. São pessoas ligadas a um grupo de extermínio muito poderoso. É complicado porque não tem nenhuma testemunha ocular daquilo tudo. Não tinha uma câmera que revelasse um ponto de partida para as investigações. E, sempre que muda o governo, muda tudo. Então, complica mais um pouco. Mas eu continuo acreditando que o caso tem que ficar no Rio, como está. Essa força-tarefa que entrou agora é formada pelas promotoras Simone Sibílio e Letícia Emile, que já estavam no caso. Pode ser que tenha um avanço maior ainda, porque elas conhecem o processo melhor do que ninguém. Já estão há quase dois anos nele. Então, a gente espera que isso tenha uma conclusão.
A senhora acredita que a lentidão das investigações se deve exclusivamente à complexidade do caso, ou passa também por interesses?
As duas coisas. Não só por ser minha filha, mas três anos é muito tempo para não ter resposta, em se tratando de uma parlamentar eleita, na segunda maior cidade do Brasil. Está mais do que na hora de ter uma resposta positiva. Por outro lado, a gente sabe que tem muita gente envolvida. Esses homens pertencem ao [grupo miliciano] Escritório do Crime, um ambiente muito perigoso e nocivo. Eles viviam só para matar as pessoas. Eles também põem em risco a família deles. É todo mundo ligado à milícia, um grupo que está no poder hoje em todo lugar, desde as altas autoridades em Brasília, e está crescendo cada vez mais. É um grupo que trabalha com um rendimento muito alto e faz com que as pessoas tenham medo, realmente. Não se paga pouco dinheiro por um crime desses, que não é feito sem o objetivo de derrubar alguém ou alcançar alguma coisa. Não sei quem a Marielle incomodou para chegar a esse ponto.
O deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), preso por ameaçar o Supremo Tribunal Federal (STF), quebrou uma placa com o nome da Marielle em outubro de 2018. Como a senhora se sentiu naquela ocasião?
Eu fiquei bem sentida com aquilo. Na verdade, ele não quebra uma placa da Marielle, ele quebra a estrutura de uma família, porque é isso que ela representa. Ele quebra também um pouco de cada eleitor que confiava na história dela e a colocou naquele parlamento. Foi um desrespeito muito grande a ela e a mim. A mãe sempre está mais perto disso. Foi uma coisa muito triste. Além de ser um ato político, foi um ato de desumanidade. A placa da Marielle simboliza o que aconteceu naquele dia. Está ali escrito: "defensora dos Direitos Humanos e das minorias, covardemente assassinada no dia 14 de março de 2018".
O que ele fez ali foi dar uma facadinha no coração da gente. Mas acho que tudo tem seu tempo. Essas pessoas ligadas ao presidente são muito tristes. Eles maltratam e desrespeitam humanamente as pessoas e as memórias delas. Não vou dizer que eu fiquei feliz [com a prisão], porque acho que liberdade cerceada não é bom para ninguém. Mas Deus cobra para cada um, e vai chegar para todos eles, inclusive os que mataram minha filha. Desde o que planejou ao que executou, eles vão ser punidos. Podem até não ser pelos homens, mas por Deus vão ser, com certeza. E ele [Daniel Silveira] já está tendo uma recompensa do que fez.