Arma de guerra está ao alcance de civis no Brasil
7 de setembro de 2022"Não precisa de experiência prévia." Foi com essas exatas palavras que o responsável por um clube de tiro localizado em Brasília respondeu a uma consulta feita pela DW sobre os passos necessários para alugar uma arma de guerra de fabricação alemã e de uso restrito das Forças Armadas e polícias.
A arma em questão é a submetralhadora MP5, com calibre 9 milímetros, produzida pela Heckler & Koch (H&K) na Alemanha. Foi essa a arma utilizada por criminosos na execução da vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, em uma emboscada no Rio de Janeiro em 2018. A MP5 foi usada em conflitos como as guerras do Golfo, do Iraque e do Afeganistão.
Há dois anos a H&K suspendeu suas exportações ao Brasil, citando preocupações com a "agitação política antes das eleições presidenciais e a dura ação policial contra a população". A empresa havia sido questionada por acionistas pela venda de armas ao Brasil.
Mesmo após o brutal assassinato de Marielle, que comoveu o mundo, dados do Exército Brasileiro obtidos pela DW revelam que civis adquiriram seis armas MP5 desde então – três delas após a proibição das exportações. Ao todo, 27 civis possuem um exemplar da submetralhadora alemã em seus arsenais.
As armas foram registradas pelo Exército como pertencentes a colecionadores e atiradores desportivos, que junto a caçadores formam a categoria CAC. Esse grupo, tímido em número até Jair Bolsonaro assumir a Presidência da República, foi beneficiado por uma série de decretos presidenciais e portarias que facilitaram a aquisição, posse e transporte de armas de fogo. Até junho de 2022, o país já contava com mais de 673 mil CACs – em 2018 eles somavam pouco mais de 117 mil, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Apesar da autorização concedida a esses CACs, o próprio Exército afirma que não há permissão para armas de "uso restrito" automáticas, como é o caso da MP5. Apenas órgãos de Estado, como Forças Armadas e polícias, podem mantê-la em seus arsenais, segundo informado pela própria força terrestre ao senador Alessandro Vieira (PSDB-SE), um dos parlamentares envolvidos na discussão de um projeto de leique busca flexibilizar ainda mais a legislação aplicável aos CACs.
"Caso a classificação 'de uso restrito' decorra de a arma executar disparos em regime de tiro automático, independentemente da energia de sua munição, legalmente apenas órgãos de Estado, como Forças Armadas e polícias, poderão possuí-las em seus acervos institucionais", diz o Exército em ofício ao Senador obtido pela reportagem.
Um decreto emitido em 2004, durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, definiu que "arma de fogo de uso restrito é aquela de uso exclusivo das Forças Armadas, de instituições de segurança pública e de pessoas físicas e jurídicas habilitadas, devidamente autorizadas pelo Comando do Exército, de acordo com legislação específica".
A MP5, como quase todas as submetralhadoras, possui o mecanismo de "selective fire", que permite ao usuário trocar entre os modos automático e semiautomático. Para o Exército, no entanto, a mera capacidade de executar disparos em regime automático restringe o uso da arma a órgãos de Estado.
"Omissão do Exército"
O uso de armas automáticas em clubes de tiro só é possível caso a instituição de Estado que detenha a arma esteja usando o local para atividade de treinamento e competição, segundo o Exército.
Ao mesmo tempo que defende no Congresso o maior acesso a armas, Vieira exige maior controle e fiscalização. "Sou contra o acesso a armas de guerra por civis. Infelizmente a atuação do Exército parece insuficiente nesta área tão importante, talvez pelo crescimento acelerado no número de armas e atiradores", disse o senador à DW. Ele afirma que fará novas cobranças ao Exército para esclarecer o descontrole sobre as submetralhadoras.
A DW identificou ao menos três clubes de tiro no Brasil – em São Paulo, Brasília e Santa Catarina – que não só dispõem de MP5 em uma situação que foge da previsão legal, como também disponibilizam a submetralhadora para aluguel a visitantes – sem qualquer necessidade de comprovação de experiência prévia, mesmo se tratando de uma arma que deveria ser usada apenas por forças de segurança.
Esse tipo de prática, que é inclusive promovido nas redes sociais pelos clubes e por visitantes, é ilegal pelas regras do Exército, a quem cabe fiscalizar clubes de tiro, atiradores e seus acervos. Em 2021, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Exército fez 1.195 visitas a clubes de tiro.
"A palavra é omissão do Exército. E se o Exército nunca deu conta, agora também não dará", afirma Isabel Figueiredo, pesquisadora em políticas públicas de segurança e conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, destacando que a capacidade de fiscalização do Exército não aumentou à medida que cresceu o número de armas, atiradores e clubes.
A despeito do aumento no número de armas e atiradores, a maioria da população ainda refuta a ideia de dar armas para cidadãos, segundo uma pesquisa Datafolha de maio de 2022. A rejeição é maior entre mulheres, pessoas negras e de baixa renda.
Nesta segunda-feira (06/09), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin restringiu o número de armas e munições que CACs podem obter sob o argumento de risco de violência política durante o período eleitoral. A decisão liminar e monocrática de Fachin ocorre no momento em que o STF já julga os decretos de armas de Bolsonaro. A votação, no entanto, foi paralisada em setembro do ano passado por um pedido de vistas do ministro Kassio Nunes Marques, indicado por Bolsonaro à Corte.
Em sua decisão, Fachin determinou que a "aquisição de armas de fogo de uso restrito só pode ser autorizada no interesse da própria segurança pública ou da defesa nacional, não em razão do interesse pessoal do requerente".
Explosão de clubes
Ao passo que cresceu o número de atiradores civis, aumentou o número de clubes e estandes de tiro ao redor do país, um reflexo da mudança da cultura de armas brasileira. Atualmente, são 2.067 clubes ao redor do país, dos quais 314 foram abertos apenas em 2022. Somente nos três primeiros anos do governo Bolsonaro, o Exército autorizou 2,5 vezes o número de clubes liberados nos três anos anteriores, sob Michel Temer e Dilma Rousseff.
Um desses clubes é o TacPro, em Brasília. Em meados de julho, o clube foi visitado por Samuel Cout, um youtuber armamentista e candidato a deputado estadual por Goiás. Cout, que é ligado ao grupo lobista Pro Armas, gravou um vídeo atirando com uma MP5 que ele diz ser semiautomática. "Mas existe a full auto aqui no Brasil, inclusive qualquer pessoa pode ir lá e testar ela lá na TacPro, mediante aluguel, é lógico, é um centro de treinamento", diz Cout aos seguidores.
A reportagem ligou para o TacPro e confirmou que não é preciso apresentar nada para atirar com a MP5. "Não precisa de experiência prévia nem nada do tipo, porque certificado de registro é de responsabilidade do stand", disse um funcionário do clube. A submetralhadora alemã aparece no catálogo no site do clube, que não omite o fato de ser uma arma automática.
O denominador comum entre os clubes que possuem MP5s identificados pela reportagem é que há sempre um ex-policial federal ligado a elas. No caso do TacPro e do ASA Atibaia, outro estabelecimento que oferece o aluguel da arma, essa figura é Nilton Luis Quintana Quiliao, um agente da Polícia Federal que teve aposentadoria especial voluntária concedida em 2019, segundo publicação do Diário Oficial da União.
A Polícia Federal é uma das forças de segurança que têm prerrogativa de adquirir MP5s. Questionada pela reportagem, a assessoria de imprensa da PF informou que só responderia sobre o assunto através da Lei de Acesso à Informação. A DW protocolou pedido, mas o prazo para resposta é de pelo menos 20 dias, incompatível com a data para fechamento desta reportagem.
MP5 em clube frequentado por filhos do presidente
Um outro exemplar da submetralhadora alemã foi identificado pela reportagem no Clube .38, em São José, na Região Metropolitana de Florianópolis, Santa Catarina, também conhecido por Montanha 38. Entre os frequentadores desse clube estão dois filhos do presidente Jair Bolsonaro, o vereador Carlos Bolsonaro e o deputado federal Eduardo Bolsonaro.
O clube catarinense já foi homenageado por Carlos Bolsonaro na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. O proprietário do .38 é Tony Eduardo de Lima e Silva Hoerhann, um brasileiro instrutor do 88 Tactical, clube nos EUA acusado de referências nazistas, e figura próxima aos irmãos Bolsonaro.