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"Se insegurança é generalizada, prevalece a força bruta"

Roberta Jansen
14 de fevereiro de 2017

Filósofo desconstrói o discurso da "natureza humana" que se revela bárbara nos momentos de crise, como no ES. Para ele, perigo é que casos assim sirvam de desculpa para intervenções cada vez mais violentas do Estado.

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Funcionária de farmácia de Cachoeira do Itapemirim, ES, espia pela janela durante greve da PM
Funcionária de farmácia de Cachoeira do Itapemirim, ES, espia pela janela durante greve da PMFoto: Reuters/P. Whitaker

A greve da Polícia Militar no Espírito Santo deflagrou uma onda de violência e saques ao comércio. Mais de 140 pessoas foram mortas durante os últimos dias em que os policiais se retiraram das ruas.

O filósofo Rodrigo de Souza Dantas, da Universidade Federal Fluminense (UFF), desconstrói o discurso da "natureza humana" que se revela bárbara nos momentos de crise.

Para ele, uma minoria barulhenta está à frente dos saques e da violência, enquanto a maioria da população se tranca em casa aterrorizada. O perigo, diz ele, é que tais episódios sirvam de desculpa para intervenções cada vez mais violentas do Estado.

Quando a polícia sai de cena, vale tudo? O que acontece?

De fato, esses momentos mostram como a polícia é o fundamento da sociedade capitalista. Se a polícia se ausenta por um dia, há uma generalização dos saques e do vandalismo num primeiro momento. Depois, a tendência é ficar todo mundo trancado em casa, aterrorizado, e o comércio fechar as portas – isso já aconteceu na Bahia, no final dos anos 90.

O que explica esse padrão?

Esse padrão é explicado por uma instância óbvia: a sociedade é organizada de tal maneira que não existe nenhum laço universal que não seja o dinheiro; ela é dividida e fragmentada em interesses particulares. A única sustentação disso é o monopólio da violência do Estado.

Dá para falarmos em "natureza humana"?

Nessa situação uma coisa importante de pensar é que a grande maioria das pessoas fica aterrorizada e se tranca em casa. Apenas de 3% a 5% acham que tudo é permitido e começam a agir dessa forma. Alguns por desespero, privação, outros por criminosos mesmos. Com o passar dos dias, com o comércio fechado, com todos trancados em casa, com as ruas vazias, a tendência é que só os grupos de crime organizado continuem agindo. Esse discurso de natureza humana acaba por legitimar a repressão do Estado. O Espírito Santo é dominado há décadas pelo crime organizado, e o Rio vai pelo mesmo caminho.

A descoberta de esquemas de corrupção generalizada nas esferas mais altas do poder tem alguma influência sobre esse tipo de ação?

Sim, essa situação é muito agravada no Brasil pela forma como a população percebe esse regime de corrupção institucionalizada. A população sabe que não tem polícia, que não tem hospital, não tem salário porque o dinheiro vai todo para a corrupção ou para o sistema financeiro. Ainda que de forma difusa, a população tem essa noção de que o mundo é governado por bandidos enquanto ela passa necessidade. Na hora que não existe o poder repressor, a perspectiva da punição, sabendo da institucionalização da corrupção, acho esse resultado previsível. E me pergunto se isso não interessa aos que estabeleceram a corrupção. No momento em que temos uma insegurança generalizada, medo, o único fundamento dessa ordem é a força bruta. Essa situação favorece, evidentemente, os discursos que prometem soluções mágicas, que virão pelo uso da força. Na minha visão, se o Estado assumir esse papel de força, o problema se agrava ainda mais.

Mas existe de fato uma crise econômica, falta de pagamento de salários...

O que existe é uma estrutura que permite aos mais ricos não pagarem vários impostos (isenções fiscais). E os impostos que eles devem pagar tampouco são pagos. Então uma crise fiscal e econômica é deflagrada, e o Estado começa a não pagar salário, aposentadoria. O temor é que se aproveitem da "situação caótica" para usar uma "solução de força".