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Retrato da vida literária em alemão a partir de jornais

Ricardo Domeneck
9 de janeiro de 2018

Tomando como base as notícias do "Feuilleton" de quatro diários da língua alemã do dia 8 de janeiro, é possível ter um pequeno retrato da vida literária no espaço linguístico germânico.

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Till Eulenspiegel: picaresco e satírico, personagem aparece em vários trabalhos das literaturas do norte e centro europeu
Till Eulenspiegel: picaresco e satírico, personagem aparece em vários trabalhos das literaturas do norte e centro europeuFoto: picture-alliance/akg-images

É possível conhecer a vida literária de um país ou de uma língua através de seus cadernos de cultura? Se um estrangeiro, ou mesmo um brasileiro, abrir hoje nas páginas dos maiores jornais do país o caderno de notícias culturais, seja da Folha (São Paulo) ou d'O Globo (Rio de Janeiro), d'O Dia (Teresina) ou do Correio do Povo (Porto Alegre), seria possível a este leitor obter uma imagem da produção literária do país?

Diz-se por todo o mundo que o próprio jornalismo impresso está em crise. Com ele, o jornalismo cultural, talvez um dos mais atingidos. Mesmo esse texto que agora escrevo será publicado em uma plataforma de notícias digital. Há além disso uma constante fricção entre a literatura e o jornalismo, entre o desejo de permanência de um e o desejo de atualidade do outro.

Pretendi hoje, para esta coluna, uma pequena polaroide da vida literária em alemão a partir de quatro jornais. Começo com um dos meus preferidos, suíço, dentre os mais respeitados na língua: o 'Neue Zürcher Zeitung'.

O jornal não me decepcionou ao trazer um artigo sobre um dos temas que mais me interessam hoje: a relação entre espécies, a nossa e as outras, como venho escrevendo uma série de artigos sobre a Zoopoética para minha editora alemã. Intitulado "Respektiert die Andersheit der Tiere” (Respeitem a alteridade dos animais), o artigo discute o movimento antiespecista que busca garantir igualdade de direitos para outras espécies e se ergue contra um certo humanismo que privilegia apenas a vida humana, ainda que nossas vidas estejam imbricadas nas de outras espécies, e delas dependa. O destaque do jornal é a obra do filósofo contemporâneo austríaco Robert Pfaller, nascido em 1962 e conhecido por seus estudos sobre o conceito de "Interpassivität”.

Voltando a Berlim, onde vivo, o Die Zeit traz como destaque os novos livros de dois autores alemães jovens, Daniel Kehlmann (publicado no Brasil pela Companhia das Letras) e Clemens Setz. O eixo do artigo é o uso que os dois autores fizeram de uma figura medieval literária e folclórica alemã, Till Eulenspiegel, uma espécie de coringa, bobo da corte.

Segundo a tradição, teria nascido no Ducado de Brunswick por volta de 1300, e morrido em 1350. Picaresco e satírico, um "trickster”, a personagem aparece em vários trabalhos das literaturas do norte e centro europeu, Alemanha, Holanda, Bélgica, Polônia, passando por Ben Jonson na Inglaterra do século 17 e chegando mesmo à Alemanha do século 20, como na obra de Gerhart Hauptmann, Till Eulenspiegel (1927). O artigo discute a atualidade da figura em nossos dias de mistura entre política e comédia. O artigo intitula-se Steckt das Böse in uns allen? (O mal esconde-se em todos nós?).

Um dos mais respeitados na Alemanha e no mundo, o Frankfurter Allgemeine Zeitung talvez surpreenda os que veem a Europa como um local mais respeitoso em relação à chamada alta cultura com sua notícia de destaque: uma exposição, na British Library (Biblioteca Britânica), da obra de J. K. Rowling. Manuscritos, ilustrações e as inspirações em torno da personagem Harry Potter. Fora da literatura de ficção, o jornal discute a obra do fotógrafo Josef Koudelka, na Agência Magnum, e do sociólogo Alexander Dobrindt.

Conheço menos da imprensa austríaca, confesso. Um amigo poeta de Viena recomendou que eu lesse Der Standard. Pois bem, a maior notícia literária do dia no jornal é o lançamento, amanhã (10/01/18), do novo livro do jovem autor Arno Geiger (n. 1968), intitulado Unter der Drachenwand. A história se passa no Mondsee em 1944, e a Drachenwand do título refere-se a uma parede de pedra nos arredores do lago, muito usada por amantes de esportes radicais para escalar. Ambientado naqueles anos difíceis, o jornal comenta o trabalho da literatura de lembrar-se do que muitos querem esquecer. O passado de tanta literatura, o presente de tantos jornais. Talvez aí resida ainda a fricção da literatura e do jornalismo, e também sua possibilidade de cooperação.

Na coluna  Bibliothek, publicada às terças-feiras, o escritor Ricardo Domeneck discute a produção literária em língua alemã, fala sobre livros recentes e antigos, faz recomendações de leitura e, de vez em quando, algumas incursões à relação literária entre o alemão e o português. A coluna Bibliothek sucede o Blog Contra a Capa.