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Reforma da Previdência, uma tarefa urgente para Boric

Mónica Nanjari
3 de fevereiro de 2022

Sob críticas há anos, sistema previdenciário do Chile será grande desafio para o novo presidente de esquerda, eleito com a promessa de mudanças sociais profundas. Reforma poderá servir de modelo para países vizinhos.

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Gabriel Boric
Gabriel Boric assume seu mandato em 11 de marçoFoto: Marcelo Hernandez/Getty Images

Devido aos protestos de 2019 no Chile, a chamada "Explosão social", e a realidade de aposentadorias bem abaixo das expectativas, a reforma do sistema previdenciário deverá ser um dos pilares fundamentais do governo do novo presidente Gabriel Boric, que assumirá o cargo em 11 de março.

Ex-líder estudantil e atual líder da Frente Ampla, Boric, de apenas 35 anos representa a parte da sociedade que quer "mudanças profundas" e que liderou os protestos pela igualdade de 2019.

Durante a campanha eleitoral, Boric defendeu melhores pensões, educação e saúde para os chilenos, com o objetivo de transformar o país num Estado de bem-estar social, similar ao que pretende a social-democracia europeia. 

"O tema do sistema previdenciário tem enorme relevância para o futuro governo, pois é um projeto estratégico e um desafio para atender às demandas da sociedade chilena", considera Gitte Cullmann, diretora do escritório regional da Fundação Heinrich Böll, entidade alemã próxima ao Partido Verde, em Santiago.

Embora ainda não exista uma reforma previdenciária propriamente dita, o presidente eleito desenvolveu um esboço inspirado em elementos de reformas da Suécia, do Reino Unido e da Nova Zelândia, que se baseiam em três pilares: uma renda básica universal, as poupanças dos trabalhadores em contas individuais administradas por uma nova entidade e poupanças extras de caráter voluntário.

O economista Guillermo Larraín, que participou do debate sobre o tema durante a campanha presidencial de Boric e foi citado como possível Ministro da Fazenda ou do Trabalho, explicou que o projeto inicial foi modificado durante o segundo turno da eleição presidencial, fazendo com que muitos aspectos ainda precisem ser definidos.

"Além disso, o principal componente da reforma foi adiantado pelo atual governo, que é a pensão básica universal [227 dólares mensais para quase 2 milhões de chilenos], que conseguiu um rápido acordo político e foi enviada como lei expressa [aprovada em 26 de janeiro de 2022]. Isso já foi feito, mas nas outras questões há muitos pontos inacabados que precisam ser debatidos", disse Larraín, que também é professor na Universidade do Chile, em entrevista à DW.

"Eu dividira a discussão em duas partes: uma é a contribuição dos trabalhadores, e a outra é a administração desses fundos", afirmou. "Em relação ao primeiro ponto, deve-se esclarecer que o Chile tem um sistema baseado numa contribuição de 10% do trabalhador sem contribuição do empregador. Isso vai mudar na reforma, com o empregador devendo contribuir com mais 6% para o trabalhador."

"Quanto à administração dos fundos, hoje a contribuição do trabalhador vai para contas individuais geridas por uma AFP [Administradora de Fundos de Pensão]. Na proposta, ficou mais ou menos acordado que no novo sistema a contribuição irá também para as contas pessoais, mas geridas com uma lógica de investimento diferente da atual, uma lógica de menor risco e mais estável, com uma visão de mais longo prazo", detalhou Larraín, que também atuou como superintendente das AFPs no Chile entre 2003 e 2006.

Simpatizantes de Gabriel Boric em comício durante a campanha presidencial chilena de 2021
A eleição de Gabriel Boric abriu as portas para a necessária reforma no sistema de administração dos fundos de pensão Foto: Matias Delacroix/AP Photo/picture alliance

Seria o fim das AFPs no Chile?

Embora, em geral, os chilenos exijam o desaparecimento das Administradoras de Fundos de Pensão, no médio prazo não se espera que elas desapareçam. O que vai acontecer, caso o projeto proposto por Boric se concretize, é que as AFPs terão que se ater a novas regras.

Cullmann destaca a importância de encontrar um caminho mais transparente para o investimento de fundos de pensão que permita o aumento das aposentadorias.

"Não há dúvida de que deve ser estabelecida uma separação entre o sistema previdenciário e o papel que esses fundos acumulados têm no funcionamento do mercado financeiro. Existem vários modelos para alcançar um sistema previdenciário justo. Por exemplo, o de alguns países europeus, que é a partir de onde os especialistas do novo governo acumularam experiências", disse Cullmann à DW.

E é aí que o Estado entrará em cena. "Na administração da contribuição dos trabalhadores, que hoje é privada, haverá uma oferta pública. Além disso, as administradoras privadas que participem desse novo sistema o farão apenas na esfera financeira e não como é o caso hoje, em que prestam assessoria previdenciária, gerando a concentração de uma indústria que administra 200 bilhões de dólares, cerca de 70% do PIB do Chile", explicou Larraín.

"As economias que estão hoje nas AFPs ficam lá, e se você quiser mantê-las por lá elas continuarão sendo gerenciadas por uma AFP. Diferente é o que acontecerá com as novas contribuições dos trabalhadores. No debate em que participei, havia duas visões – os que dizem que as novas contribuições devem ir para o novo sistema e os que pensam que a porta deve ficar aberta para que as pessoas possam decidir para onde querem que o dinheiro vá", disse o economista.

Manifestação contra o sistema privado de pensões no Chile
Há vários anos, ocorre um movimento chamado NO+AFP contra o sistema previdenciário no Chile Foto: Mario Ruiz/dpa/picture-alliance

Eco na América Latina

O sistema de capitalização individual é amplamente difundido pelo mundo, tanto como sistema único quanto misto. No caso da América Latina, Peru, Colômbia, República Dominicana e México são alguns que se destacaram pela adoção de AFPs na década de 1990 para a gestão previdenciária, e em todos eles foram aplicadas ou estão em processo de análise reformas visando a melhoria das aposentadorias.   

Quando José Piñera, irmão do atual presidente chileno, Sebastián Piñera, apresentou as AFPs no Chile, ele garantiu que os chilenos teriam uma aposentadoria equivalente a 100% de seus salários – mas já está claro que sua projeção estava equivocada.

A reforma a ser realizada no Chile certamente despertará o interesse de pelo menos os países da região, considera a representante da Fundação Heinrich Böll.

"Uma mudança no sistema previdenciário no Chile vai gerar interesse, mas a realidade de cada país é diferente. A situação atual de cada um deve ser bem avaliada antes de que se possam comparar os sistemas previdenciários. Com o modelo ultraneoliberal do Chile, fracassou a ideia de conseguir um sistema previdenciário justo com os mecanismos do mercado", disse Cullmann.

Larraín segue uma linha semelhante. "Os países vizinhos devem ao menos olhar para o que é feito no Chile, porque estamos discutindo isso há pelo menos dez anos e nenhuma ação foi tomada até agora. Acho que muitos dos países que copiaram acriticamente a reforma chilena têm que olhar para a solução que está em curso com um olhar mais crítico e tentar tirar conclusões que sejam apropriadas para eles", disse o economista. "De qualquer forma, espero que seja uma fonte de inspiração, porque a verdade é que as aposentadorias em toda a América Latina são um problema latente."