Reciclagem de composições era usual na música sacra
11 de agosto de 2013Ao terminar uma composição, Johann Sebastian Bach costumava assinar o manuscrito com três simples letras: "S.D.G." – "Soli Deo Gloria" ("Glória a Deus somente", em latim). Embora cristão praticante, para ele tanto fazia se tratava-se de uma peça sacra como o Oratório de Natal ou de uma cantata em honra de algum príncipe ou princesa: para Bach, a música era um presente divino.
E sua música, independente da ocasião para que fosse composta, estava arraigada na crença em Deus: "Com toda música, Deus deve ser louvado e os homens, deleitados", era o seu lema. Do contrário, dizia, toda música "é só barulho e confusão diabólicos".
De fato, as fronteiras entre a música sacra e profana sempre foram flexíveis e permeáveis. A música sacra se orientava pelo estilo da época e repetidamente adotava formas de expressão seculares – e vice-versa. Uma distinção estrita entre obras profanas e sacras, como é usual hoje em dia, só surgirá na Europa nos séculos 18 e 19.
Por isso, Beate Angelika Kraus, docente de História da Música Litúrgica na Escola Superior de Música de Colônia, na Alemanha, acha um tanto problemático querer traçar uma linha definida entre os dois campos. "A música é sempre manifestação de uma necessidade humana básica de expressão artística. Portanto, sempre contém tanto opiniões pessoais quanto mensagens religiosas", analisa.
Da rua para a igreja
Na Idade Média e no Renascimento, era comum escutar-se as mesmas melodias na rua e na igreja – a diferença estava apenas na letra. Os trovadores medievais não cantavam de forma muito diferente dos coristas eclesiásticos. Assim, com um novo texto, a serenata de um menestrel para sua amada podia ser rapidamente reciclada em canto de amor a Jesus.
"Essa era uma prática comum", comenta Beate Kraus. "Se uma canção secular continha a expressão adequada a um determinado estado de espírito religioso – amor, alegria, confiança –, então não havia problema em combiná-la com um outro texto."
Deste modo, muitas missas e salmos dos séculos 14 a 16 não mais se baseiam em antigas melodias corais gregorianas. Cada vez mais, as assim chamadas "missas de paródia" tomavam músicas populares como ponto de partida melódico. E é desta maneira que até mesmo canções de beber ou de guerra conseguiram penetrar nos mosteiros.
O exemplo mais famoso é L'homme armé (O homem armado), uma chanson de soldats presumivelmente datando do século 15. A melodia francesa era tão apreciada, que compositores de toda a Europa escreveram missas com base nela, entre eles Guillaume Dufay, Johannes Ockeghem, Josquin Desprez (em duas versões), Ludwig Senfl e Giovanni Pierluigi da Palestrina.
Pela Renascença adentro, a elaboração original e erudita dessa canção era considerada uma espécie de prova de fogo para a perícia de um compositor. Mais de 40 missas L'homme armé são conhecidas, numa tradição que se estende até1999, com A Mass for Peace, do galês Karl Jenkins.
O ardil de Palestrina
Para o papa Paulo 3º, tais práticas eram abomináveis, e um dos temas do Concílio de Trento (1545-1563) foi a reforma da música da Igreja Católica. Um alvo de crítica era o excesso de polifonia, ou seja, a complexa simultaneidade de vozes, que ameaçava a compreensão dos textos.
Acima de tudo, no entanto, os cardeais criticavam a influência mundana sobre a música sacra: missas de paródia, sobre canções grosseiras de mercenários, não tinham lugar na Casa de Deus. Em vez disso, os líderes católicos exigiam que "toda música cuja melodia ou texto contenha algo lascivo ou impuro deve ser expulsa da Igreja".
Reza a lenda que o então bispo de Milão, Carlo Borromeo, haveria encarregado Giovanni Pierluigi da Palestrina de escrever uma missa que preenchesse todas as exigências do Concílio. O compositor produziu várias, que foram plenamente aceitas. O grêmio louvou sobretudo a compreensibilidade da Missa Papae Marcelli.
A partir de então, Palestrina foi consagrado como "Salvador da música eclesiástica". No entanto, um detalhe escapara aos rigorosos ouvidos dos guardiões do Vaticano: apesar da proibição do emprego da paródia, a "missa-modelo" se baseava justamente na melodia da controvertida L'homme armé.
Reciclagem à moda barroca
O período barroco levou um passo adiante a técnica renascentista da paródia – a "reciclagem" de material musical como base para novas composições. No entanto, enquanto na época de Palestrina os músicos quase sempre "furtavam" de seus colegas, os barrocos também recorriam muito às suas próprias obras mais antigas.
"É preciso ter em mente o quanto se compunha na época. Para fazer jus às exigências dos príncipes ou da Igreja, era preciso ser incrivelmente produtivo", descreve Beate Angelika Kraus. "E por que não reaproveitar uma obra especialmente e bem sucedida? Essa prática era comum e aceita."
Tal se aplicava também a compositores do porte de Johann Sebastian Bach ou Georg Friedrich Händel: para eles, o reaproveitamento da própria produção era uma necessidade, do ponto de vista financeiro e da economia produtiva. Para atender à enorme demanda de oratórios com várias horas de duração (no caso de Händel) ou de cantatas para todas as ocasiões litúrgicas do ano (no caso de Bach), eles não tinham alternativa senão reciclar peças mais antigas.
Tanto na terra como no céu
Com novo texto, Bach transformou, a toque de caixa, Tönet ihr Pauken, erschallet Trompeten ("Soai, tímpanos, clamai, trompetes", da cantata para o aniversário da princesa eleitora da Saxônia Maria Josefa), no coro Jauchzet, frohlocket, que abre o Oratório de Natal.
"O critério decisivo para tais modificações era o 'afeto' [no sentido da 'doutrina dos afetos'], a emoção a ser provocada", ressalta a musicóloga Kraus. "Ambas as peças foram concebidas como 'serenata de aniversário', expressando, portanto, o mesmo affekt."
Mais tarde, essa "cleptomania" apresentaria um enorme problema para as primeiras gerações de estudiosos na música bachiana, no século 19. Pois a reciclagem de peças profanas para fins sacros não condizia com a imagem romantizada de Bach como "o maior compositor sacro da Alemanha".
Entretanto, para o pragmático profissional da música, esse detalhe jamais representou um problema artístico-moral. Ele roubava de si mesmo porque a obra era boa e porque também servia à ocasião litúrgica. Tímpanos e trompetes eram símbolos de fulgor majestático, tanto na terra como no céu. E para ambos valia a divisa: "Soli Deo Gloria".