Por que a Alemanha não esquece o seu passado
Nos ensinos fundamental e médio, tive algumas poucas aulas sobre a ditadura militar no Brasil. Aprendi em linha cronológica quem foram os generais, quais atos institucionais foram implementados, mas nunca fui informada pelos professores sobre a tortura institucionalizada, sobre quantas pessoas foram mortas ou quantas desapareceram. Eu também não tive a oportunidade de conhecer as histórias individuais de quem se posicionou contra o regime. As aulas de literatura me permitiram ao menos saber da poesia, da arte e da dor por trás das canções de protesto e de exílio.
Foi na faculdade de jornalismo que tive uma visão abrangente sobre os horrores desse período. Conheci a história do jornalista e professor Vladimir Herzog, ex-diretor na TV Cultura. De origem judaica, os pais de Herzog, da antiga Iugoslávia, imigraram ao Brasil para fugir da perseguição nazista, mas o filho não sobreviveu à ditadura brasileira. Foi torturado e morto pelos militares, que forjaram um suicídio nas dependências do DOI-CODI, para onde o jornalista tinha sido levado para prestar depoimento. Apenas há dois meses, o Estado brasileiro foi condenado pelo assassinato de Herzog, considerado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como um crime contra a humanidade.
Levou décadas para a Alemanha lidar duplamente com o passado nazista e o passado soviético. A lembrança sobre o Holocausto foi construída ao longo de anos como uma mensagem duradoura às futuras gerações. Por meio de museus, memoriais, disciplinas nas escolas, filmes e livros, a Alemanha formou uma memória cultural sobre as atrocidades do passado, sobretudo sobre a perseguição contra os judeus, para garantir que as presentes gerações não permitam que esses erros históricos se repitam.
Meu namorado, alemão, aprendeu exaustivamente por seis anos sobre o regime nazista nas disciplinas de História, Política e Geografia. Foram ao menos cinco horas de aulas semanais sobre a Segunda Guerra Mundial, campos de extermínio, o Terceiro Reich e o extremismo de direita, xenofobia e toda a história que culminou com a ascensão de Adolf Hitler ao poder.
Os alunos não são poupados de ver cenas reais de documentários mostrando a fumaça saindo das câmaras de gás onde milhões de judeus foram mortos e nem de ver os corpos sendo arrastados por tratores nos campos de concentração até as valas. Os alunos também são informados sobre o assassinato de negros, de pessoas de origem roma e de homossexuais durante o regime nazista. "Ouvimos e vimos tanto sobre esse período até ficarmos horrorizados e não aguentarmos mais. Mas tudo isso é para se ter certeza que as presentes gerações não deixarão isso acontecer de novo”, conta ele que é neto de uma holandesa que escondia judeus em casa para que não fossem mortos pelos nazistas.
Trazer os fatos ao conhecimento do público, admitir os erros e dar espaço à reconciliação são as estratégias que a Alemanha lança mão para atingir um entendimento nacional de que é preciso superar o passado, transformando regimes violadores de direitos humanos em democracias. Por isso, os alemães são ensinados a se confrontar com o Holocausto. Ao mesmo tempo, leis criminalizam fazer gestos alusivos ao nazismo, exibir símbolos nazistas e relativizar que houve extermínio de judeus, inclusive com pena de prisão.
Nas ruas, é comum topar com pequenos memoriais nas calçadas que homenageiam as vítimas do Holocausto. As chamadas Stolpersteine ("pedras de tropeço”), sinalizam que na casa em frente viveu um judeu morto pelo regime nazista. As placas – são mais de 60 mil em toda a Europa – indicam o nome, a data de nascimento e o dia em que a vítima foi levada ao campo de concentração.
Em muitas partes da Alemanha, cada passo é, de fato, um tropeço na história. Símbolos, memoriais e museus não deixam alemães, imigrantes e turistas ficarem alheios ao passado do país. Isso se reflete em políticas públicas que têm o objetivo de garantir que a verdade sobre o horror do nazismo não seja questionada por boatos e mentiras. E, nesse sentido, a meu ver, a educação escolar tem o papel crucial de formar uma sociedade consciente e informada.
Na coluna Alemanices, publicada às sextas-feiras, Karina Gomes escreve crônicas sobre os hábitos alemães, com os quais ainda tenta se acostumar. A repórter da DW Brasil e DW África tem prêmios jornalísticos na área de sustentabilidade e é mestre em Direitos Humanos.
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