Pluralidade marca ato pela democracia em São Paulo
11 de agosto de 2022A pluralidade foi a marca do ato em defesa da democracia, realizado nesta quinta-feira (11/08) no largo São Francisco, onde fica a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). A leitura dos manifestos em defesa da democracia e do Estado democrático de direito colocou lado a lado personalidades do setor econômico e financeiro do país, lideranças políticas e representantes dos movimentos negro, dos povos originários, sem-terra, sem-teto, expoentes da cultura e das artes, acadêmicos, intelectuais, centrais sindicais e organizações não governamentais. Era um éthos a favor da democracia.
A menos de dois meses das eleições, essa ampla convergência de atores tão distintos só foi possível diante das ameaças de ruptura institucional em inúmeros sinais emitidos pelo próprio presidente Jair Bolsonaro (PL) de desrespeito ao processo democrático, além de sucessivos ataques diretos ao sistema eletrônico de votação no país e em especial ao Supremo Tribunal Federal (STF).
O evento foi marcado pela leitura de dois manifestos. O primeiro, o manifesto "Em defesa da democracia e da justiça", que foi apelidado de Carta da Fiesp (Federação das Indústrias de São Paulo). O presidente da Fiesp, Josué Gomes, estava presente e acompanhou o evento discretamente. Gomes é filho de José Alencar, que foi vice-presidente no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Esse manifesto conta com a assinatura de 107 entidades. O presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Isaac Sidney, também compareceu. Nenhum dos dois falou publicamente.
O outro manifesto lido no evento foi a Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito, que já tem quase 1 milhão de signatários. Milhares de cidadãos, espalhados pelas ruas do largo São Francisco, centro histórico de São Paulo, acompanharam a leitura da carta por um telão, do lado de fora da universidade.
Como definiu o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias (no governo FHC), encarregado de ler a Carta da Fiesp no evento, "capital e trabalho se juntam em defesa da democracia". Emocionado, e já em idade avançada, o ex-ministro, que participou da articulação da Carta aos Brasileiros na mesma data em 1977 – num ato contra a ditadura militar – definiu o atual momento como "grandioso".
"Conseguimos colocar todas essas pessoas na mesa, que num prazo curtíssimo de tempo concordaram com os termos da carta", comemorou Oscar Vilhena, professor da FGV Direito e membro do comitê de organização do manifesto. "Quero crer que um ato como este tem potencial enorme de dissuadir grupos radicais que eventualmente tivessem em mente a ousadia de desafiar a democracia brasileira", disse ele à DW.
Vilhena afirmou que desde o primeiro momento os organizadores do manifesto achavam que seria possível congregar setores significativos da sociedade brasileira, "da Coalizão Negra por Direitos à Febraban", com um objetivo único e muito claro: a defesa da democracia. Somente as centrais sindicais signatárias, pontuou, representam 60 milhões de brasileiros.
"MST, povos originários, movimento negro, ONGs, todos os setores vibrantes e significativos da sociedade brasileira estavam aqui hoje, e para convergir. Isso manda um sinal de que as pessoas podem estar em posições políticas distintas, mas são capazes de dialogar e convergir em defesa da democracia."
Cautela dentro da USP para não citar Bolsonaro
A leitura da "Carta da Fiesp" ocorreu dentro da Faculdade de Direito, num clima repleto de cautela. Não foi citado em nenhum momento o nome de Jair Bolsonaro. Alguns oradores, que representavam movimentos populares, referiram-se ao atual governo, mas sem referências diretas ao presidente.
O nome de Lula também não ecoou no evento, ainda que lideranças políticas próximas ao ex-presidente e a campanha do petista estivessem presentes, como o ex-prefeito Fernando Haddad, que disputa o governo de São Paulo, e o ex-ministro Aloízio Mercadante, coordenador do programa de governo de Lula.
Os oradores selecionados para o evento interno na faculdade representavam esse amplo espectro social, do capital ao trabalho, como definiu Carlos Dias. "Vivemos hoje num mundo onde ameaças autoritárias e populistas nos assustam. Já vivemos isso no passado. Não temos um caminho que não seja o da liberdade e da democracia", afirmou Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, que representava ali o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), fundado por ele. O economista, ligado a governos passados do PSDB, chamou a situação atual de esdrúxula.
À DW Brasil, Fraga foi direto ao falar do elo que une democracia e economia. "Os fundamentos democráticos são a garantia da segurança e da previsibilidade, essenciais para que se aposte no futuro. Crescimento depende disso, o combate a todas as mazelas e desigualdades depende também de uma democracia que funcione." O economista enfatizou que "nunca, nunca" imaginou viver um período como o atual no Brasil e disse que o ato democrático deve funcionar como instrumento de dissuasão dos que planejam qualquer tipo de ruptura.
O ex-presidente da Fiesp Horácio Lafer Piva, também orador, salientou que todas as pessoas e organizações ali presentes compreendem "seu papel de defesa do que nos é mais sagrado: a liberdade". Piva pediu respeito aos Poderes, à justiça, à diversidade, a diferentes ideologias e aos freios e contrapesos.
"Essa carta não define classe social, não define gênero, não tem religião, não tem partido político, porque é plural. Esse documento não é um documento partidário, também não é um bilhete ou uma cartinha, como alguém insinua", afirmou Francisco Canindé, representando a União Geral dos Trabalhadores, uma central sindical. Bolsonaro se referiu ao manifesto de forma pejorativa, chamando-o de "cartinha".
Indígenas presentes
"É importante a presença dos povos originários em qualquer ato que envolva a história do Brasil. Estamos presentes para debater não só a democracia, como também a própria etimologia dos termos democracia e demarcação. Os povos originários lutam muito fortemente pela demarcação de suas terras. Assim como a democracia. Tanto um quanto o outro significam delimitar, colocar limites. A democracia coloca limites ao totalitarismo, à mentira, à própria ignorância. Lutamos pela demarcação de terras, do que chamamos de nossa mãe, que é nossa ancestralidade", explicou Álvaro Gonzaga, professor de Direito na PUC-SP, de origem Guarani Kaiowá.
Ao lado de Camilo Kayapó, da União Plurinacional de Estudantes Indígenas, e de Vanuza Kaimbé, do Programa Pindorama da PUC-SP e da Aldeia Multiétnica Guarulhos, Gonzaga acompanhava a leitura do manifesto dentro do salão da Faculdade de Direito.
"Esse manifesto pode servir como um alerta, como um despertar. Em várias histórias e filosofias, sempre existe um momento de virada, de alvorecer, de renascimento. Há um instrumento indígena chamado boré, tocado sempre para chamar os dispersos. Hoje, os dispersos que defendem a democracia estão aqui, pois o boré tocou, capitaneado pelo diretor da Faculdade de Direito da USP, Celso Campilongo, e ao tocar o boré, os que defendem a democracia no Brasil, que é um inumerado de pessoas, seguramente vão conseguir reverberar isso", disse o professor indígena.
O lado de fora
Se os representantes de entidades optaram por enfatizar o caráter suprapartidário do manifesto, sem vinculação a qualquer candidatura, em especial o setor financeiro e econômico, do lado de fora da Faculdade de Direito inúmeros cabos eleitorais circulavam nas ruas, com santinhos e propagandas de candidatos, a grande maioria de centro-esquerda. Do lado de fora foi impossível conter gritos de "Fora, Bolsonaro", e também houve momentos em que os manifestantes entoaram o conhecido jingle "Olé, olé, olá, Lula, Lula".
Elegante, a advogada Cristina Arfelli, 57 anos, circulava encantada em meio à gritaria dos estudantes. "A USP é a minha casa. Eu quero um futuro melhor para o Brasil. A continuidade do governo Bolsonaro vai criar uma ditadura neste país. Ele não tem capacidade intelectual, nem moral, de ser líder de 220 milhões de brasileiros. Não respeita as pessoas, o meio ambiente, as leis, e está minando todo o estamento jurídico deste país", lamentou Arfelli. "Por isso estou aqui."
"O povo tem que ser esclarecido. Quanto mais esclarecido melhor. E democracia é povo", tentou sintetizar a ex-cabeleireira e dona de casa Amélia Lopes Pessoa, 80 anos. "Eu sou sempre motivada pela esquerda", disse, sem receios de declarar o voto a Lula.
Um grupo de estudantes com os rostos pintados de verde e amarelo se destacava em meio à manifestação. "Queremos ressignificar essa simbologia dos caras pintadas. E a bandeira do Brasil também é nossa", disse Mislany Santana, 16 anos. Animada, ela conta que tirou o título de eleitor, mas prefere não declarar o voto. "Desde sempre fui muito ligada à política, e principalmente à defesa dos direitos dos adolescentes. Como estudante, como mulher preta, é importante que eu lute pelos meus direitos, pela democracia e pelo povo", justificou.