Pizza para a Coreia do Norte
21 de abril de 2018Ter pizza como na Itália em plena Pyongyang era um sonho de Kim Jong-il. O antigo ditador norte-coreano com fama de gourmet adorava esse prato típico italiano, ao ponto de querer levá-lo de todo modo para seu país. Assim, nove anos atrás, abriu-se a primeira pizzaria da Coreia do Norte, a Milky Way. Um local para as elites, longe dos problemas onipresentes no resto do país, como fome ou subnutrição.
O ditador não deixou nada ao acaso: os ingredientes para os pratos foram especialmente importados da Itália, e os pizzaiolos, enviados a Roma e Nápoles para aprender na fonte como se prepara a popular iguaria e garantir o sabor autêntico.
O restaurante é citado até mesmo no site Lonely Planet. O guia de viagens classifica a pizza de "bastante aceitável" e menciona uma "grande seleção de pratos de massas, e o onipresente 'after-dinner karaoke show'".
O jornal Choson Sinbo, publicado no Japão por coreanos exilados, foi o primeiro a noticiar a abertura da pizzaria, em março de 2009, e a imprensa de todo o mundo logo divulgou a notícia. Desde que o artista sul-coreano Hwang Kim ficou sabendo da história, não conseguiu mais parar de pensar nela.
"Achei bem bizarro. Na verdade, o acesso a influências de outras culturas é muito limitado na Coreia do Norte e submetido a regras rígidas, pelo menos para as pessoas comuns. É claro que a liderança política tem esse tipo de privilégio. Agora havia, de fato uma pizzaria na Coreia do Norte, mas só uma pequena minoria podia comer lá, o povo tinha que ficar de fora."
Ele acabou tendo uma ideia: através de meios artísticos, contornar a censura e enviar mensagens ao outro lado. Seu veículo seria um filme especial para os norte-coreanos.
"A comunicação transfronteiriça é praticamente impossível. Devido às condições básicas na Coreia do Norte, tudo é muito limitado", reconhece Hwang, mas isso não o deteve.
Assim nasceu o projeto Pizzas for the people (Pizzas para o povo), uma série de quatro curtas-metragens com dois protagonistas, uma atriz e um ator sul-coreanos. A série de curtas completa será exibida pela primeira vez na Alemanha neste domingo (22/04), no festival de teatro Heidelberger Stückemarkt. Hwang estará presente e falará sobre formas de evitar a censura, além de responder às perguntas do público.
"A coisa toda é uma mistura de telenovela e vídeo caseiro", explica o autor. "Num tom sutilmente satírico, queremos tentar contar aos norte-coreanos algo sobre o estilo de vida ocidental." Com cinco minutos de duração cada um, os episódios de Pizzas for the people tratam de temas diversos, do gênero musical K-pop ao Natal. E, claro, de como fazer pizza.
Pizza com um toque coreano
"Para você não ter sempre que esperar meses a fio por uma mesa livre no restaurante italiano Milky Way, aqui vão as instruções de como fazer uma deliciosa pizza também em casa", diz a atriz diretamente para a câmera.
De avental, na cozinha, ela começa seu "tutorial", explicando a maneira correta de fazer massa de pizza e que ingredientes são necessários. "Nós não temos na Coreia os pimentões grandes que existem na Europa. Mas pimentões pequenos também servem", diz.
"Fora isso, são necessários tomates, milho e linguiça. E, claro, queijo. Mas ele é difícil de se conseguir. Quem não tiver, pode usar tofu no lugar", prossegue a jovem. Para esticar a massa, pode-se usar uma garrafa vazia de aguardente. Aí, é só guarnecer a pizza e levá-la ao forno.
Na próxima sequência, vê-se a mulher com o namorado. Sentados à mesa, no chão, querem provar pizza pela primeira vez na vida. Depois da primeira mordida, ambos começam a rir. "É para ter esse gosto?", pergunta o ator. E ela: "Como é que eu vou saber?"
O homem então passa pasta de pimenta coreana e dá a próxima mordida com prazer. Ela, de início, não quer seguir seu exemplo, pois aí não é mais a receita original. Mas acaba por experimentar. Ela também gosta mais da pizza com um toque coreano. Ambos estão contentes. E assim acaba o primeiro episódio de Pizzas for the people.
Fome cultural
Um vídeo desses interessa à população do país sob regime comunista? As pessoas não têm problemas mais urgentes do que comida italiana? Hwang se fez tais perguntas ao iniciar o projeto e consultou também norte-coreanos que vivem no exílio.
"Eu me informei junto a eles se a minha ideia para um filme seria bem aceita na Coreia do Norte. Todos me asseguraram que as pessoas sem dúvida iam querer assistir a uma coisa assim, pois são loucas por tudo o que vem de fora."
Nos mercados negros do país, circulam incontáveis DVDs com filmes ou telenovelas, sobretudo da Coreia do Sul. Também livros e CDs de música são muito disputados, afirma o artista.
"Mesmo não tendo pouco para sobreviver, muitos procuram poupar seu dinheiro para comprar DVDs. Eu descreveria a coisa como uma espécie de fome cultural, muito difundida apesar de a vida cotidiana ser dura", diz o artista.
Os contrabandistas
Nos meses seguintes, o planejado projeto cinematográfico tomou formas concretas, com as filmagens realizadas na Coreia do Sul. No começo de 2010, o filme estava pronto e foi produzido um total de 500 DVDs. Mas, como fazê-los chegar ao público-alvo?
"É um segredo público o fato de que o contrabando prospera. Desse modo, mercadorias ou dinheiro estão sempre chegando ao país. Claro que é oficialmente proibido, mas o governo norte-coreano faz vista grossa, porque é bom para a economia", explica Hwang.
Decidido a também utilizar tais canais ilegais para seu projeto, ele colocou seus intermediários em contato com contrabandistas na fronteira entre a Coreia do Norte e a China. Cinco homens foram encarregados de atravessar a fronteira com 100 DVDs cada um, a fim de disponibilizá-los nos mercados negros.
"Eu não vendi os vídeos para os traficantes, mas simplesmente os dei a eles, dizendo que ficava a seu encargo vendê-los ou distribuir grátis entre o povo. Acho que alguns certamente exigiram dinheiro em troca, talvez o equivalente a um euro. Mas não sei dizer exatamente", conta Hwang.
Feedback do público
O artista tampouco sabe dizer quantos efetivamente viram seus filmes. Segundo os relatos dos contrabandistas, todos os exemplares se esgotaram. "Eles eram o meu único canal de comunicação, e é preciso dizer que não é um canal tão confiável assim. Eu até estabeleci uma certa relação com eles, mas não dá para confiar completamente."
É comum que os traficantes tragam alguma coisa de volta da Coreia do Norte para seus contratantes, uma espécie de comprovante de que cumpriram a tarefa, explica. "Podem ser, digamos, cartas ou assinaturas. Também eu recebi reações, por exemplo, fotos de gente que fez pizza depois de assistir ao vídeo." Houve, ainda, cartas de fãs para a protagonista feminina.
Ainda assim não houve uma continuação de Pizzas for the people. A história estava encerrada, diz Hwang. Em vez disso, em 2013 ele fez um novo projeto, um experimento tratando da comunicação em tempo real entre coreanos do Norte e do Sul.
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