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Pardos de ontem e de hoje

Brasilien Jerônimo Cruz
Jerônimo Aguiar Duarte da Cruz
18 de novembro de 2021

Mestiçagem brasileira é nuançada, e exemplos como o da lei de cotas têm permitido a descoberta de ancestrais e o fortalecimento de aspectos pretos, ao invés da valorização do embranquecimento comum aos pardos no passado.

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Em foto interna, estudante de costas com penteado afro no cabelo está sentado e assiste a uma aula.
"Em espaços de ensino, há um processo de valorização de aspectos fenotípicos, como abandono de alisamento dos fios, em busca da afirmação de uma identidade negra"Foto: DW/N. Pontes

Em seu novo disco, Caetano Veloso gravou a canção intitulada Pardo. Com belíssimo arranjo de Letieres Leite, escrita pelo filho de Santo Amaro e gravada de forma inédita pela cantora Céu ainda em 2019, sua letra nos conta sobre uma relação homoafetiva em que os sujeitos aparecem em constante movimento de identificação étnica. "Sou pardo e não tardo/ A sentir-me crescer o pretume/ Sou pardo e me ardo de amores por ti", diz em um trecho. Em outro acrescenta: "Nego/ Teu rosa é mais rosa/ Que o rosa da mais rosa rosa/ Veio um beijo preto".

A questão é atualíssima.

O 20 de Novembro coloca justamente em relevo uma série de discussões em torno dessas questões da negritude no Brasil. Como se sabe, debates encaminhados nos últimos anos por meio de várias leis sancionadas em nível federal viabilizaram o resgate de histórias da população negra nas escolas, como também promoveram maior conscientização da desigualdade racial em universidades e no mercado de trabalho.

Do ponto de vista das humanidades, no mês de novembro tem se consolidado uma crescente divulgação de pesquisas sobre as dinâmicas raciais. Tarefa essencial e árdua em um país com tantas mazelas.

E nesse universo de temas, sem dúvidas, a mestiçagem brasileira ainda provoca inquietações. Em especial o fenômeno dos pardos que, vira e mexe, provoca rebuliço nas redes sociais, onde posts viram trends alavancados por diversas pessoas que problematizam o ser pardo e seu pertencimento identitário à negritude.

Ao menos desde Gilberto Freyre, estudos sobre a mestiçagem brasileira frequentemente apontaram o pardo como persona com capacidade de mobilidade social por meio do embranquecimento, tendo o mundo branco como referencial e se afastando de sua ancestralidade preta, tendo em vista os pesadíssimos estigmas da escravização. Sem dúvidas, o Estado português e posteriormente o brasileiro infligiram profundas marcas sobre africanos e seus descendentes, como o apagamento de seus nomes, conversão forçada e escravização. Logo, as trajetórias de mobilidade social e de sucesso de mestiços no período colonial e imperial se justificariam pelo fato de que era possível se passar por branco.

Para citar o caso da Bahia, terra do senhor Veloso, intelectuais do passado e do presente falam de um histórico de afastamento entre pardos e pretos, alguns apontam até mesmo rivalidades, na medida em que pardos valorizariam o universo branco, preterindo os pretos, que em oposição reforçariam seus vínculos internos e atlânticos. Basta lembrarmos da Salvador mestiça na obra de Jorge Amado ou da Salvador atlântica dos historiadores recentes. Tal afastamento não é de todo verdade. E é possível citar vários exemplos.

Ali em Salvador, nas proximidades da igreja de Nosso Senhor do Bonfim em fins do século 18, o preto Quintiliano e o pardo Antônio manifestavam mais uma prova de sua amizade, agora como compadres. Identifiquei essa história em fontes de época em que foi possível atestar que a cumplicidade dos dois era de longa data. Ambos ocupavam postos de destaque na mesa de direção da Irmandade do Rosário, tratando das questões da vida e da morte dos irmãos. Organizavam as rendas, as matrículas dos membros e as festas. A parceria desses homens se manifestava inclusive em práticas de alforria a pessoas escravizadas na cidade. Como essa, houve diversas outras histórias de solidariedade entre pardos, africanos jejes, minas e pretos nascidos no Brasil, especialmente tendo em vista o importante papel das comunidades africanas na Cidade da Bahia daquele período.

Por outro lado, pesquisas vêm demonstrando grandes entraves socioeconômicos comuns a pretos e pardos do Brasil contemporâneo. Nesse cenário, ambos compõem estatisticamente a população negra, muito mais próximos entre si nos indicadores se comparados com a população tida como branca - embora se defenda que a definição binária negro-branco seja um tanto simplista tendo em vista os conceitos populares de definição de cor em nosso país.

De qualquer maneira, exemplos como o da lei de cotas têm funcionado como forma de enfrentar desigualdades estruturais em universidades brasileiras, viabilizando o ingresso de pretos e pardos a partir do critério socioeconômico. Nesses espaços, novos significados para as identidades negras têm surgido: fortalecimento dos traços pretos e muitas vezes descoberta de ancestrais nas famílias. Ao invés da valorização do embranquecimento comum aos pardos do passado, nota-se a valorização de aspectos pretos, inclusive fenotípicos como deixar crescer o cabelo natural e o abandono de alisamentos dos fios em busca da afirmação de uma identidade negra.

Nota-se que tanto no passado como no presente, a despeito das contradições e complexidades do fenômeno da mestiçagem no país, a história de pretos e pardos é muito mais nuançada. E no mês da consciência negra faz-se necessário olhar para o passado, para o presente e para o futuro em busca dessas histórias e identidades que surgem constantemente no fluxo do rio de nossa história.

*Este artigo compõe a Ocupação da Rede de HistoriadorXs NegrXs em veículos de comunicação de todo o Brasil neste 20 de novembro de 2021.

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Jerônimo Aguiar Duarte da Cruz é doutorando em História Social pela UFRJ, integrante da Rede de Historiadorxs Negrxs e do grupo de pesquisa Antigo Regime nos Trópicos (CNPq) e autor de textos sobre pardos no Rio de Janeiro e na Salvador do século 18.

O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.

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