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Reconhecimento fotográfico não serve como prova na Justiça

19 de abril de 2024

Especialistas em segurança afirmam que prisão de professor negro sem passagem pela polícia com base apenas em reconhecimento por foto revela falhas na investigação e falta de critérios para formular álbuns de suspeitos.

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Clayton Ferreira Gomes dos Santos posa para foto ao lado de uma goleira
Clayton Ferreira Gomes dos Santos não tinha nenhuma passagem pela polícia, mesmo assim sua foto aparecia em um álbum de suspeitosFoto: Gustavo Basso/DW

Foram três dias e duas noites mal dormidas na carceragem do 26º DP, na zona sul de São Paulo. Clayton Ferreira Gomes dos Santos, de 40 anos, ficou preso sem saber que crime que teria cometido. "Os policiais que me questionavam ficavam irritados quando eu não sabia informar o artigo pelo qual tinha sido preso temporariamente", conta o professor de educação física, solto na última quinta-feira (18/04) após habeas corpus. Uma decisão que, segundo ele, veio apenas após seu caso ganhar repercussão nacional.

Santos foi preso temporariamente, suspeito de envolvimento em um caso de sequestro relâmpago ocorrido no final de outubro em Iguape, a 200 km de São Paulo. A única prova apresentada pela Polícia Civil contra ele foi o reconhecimento fotográfico feito pela vítima. Foi o suficiente para que polícia, Ministério Público de São Paulo (MP-SP) e Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) expedissem o pedido de prisão temporária, apesar de a Escola Estadual Rubens do Amaral, onde Santos trabalha, atestar que ele estava lecionando no dia e horário do crime.

Quando pisou no 26º DP de Sacomã, na zona sul de São Paulo, na manhã da última terça-feira, respondia a uma notificação para "prestar esclarecimentos". Acreditava estar colaborando com um caso de furto do qual fora vítima – mas saiu da sala onde era interrogado diretamente para a carceragem, algemado.

"Já estava achando tudo muito estranho desde que cheguei na delegacia, mas a maior humilhação foi ser colocado numa cela com um cheiro horroroso, onde era impossível sentar no chão, com uma garrafa de plástico com água e outra para usar como banheiro", narra.

Da carceragem, saiu somente três dias depois, pela porta dos fundos e entre lágrimas. Para ele, não há dúvida de que sofreu racismo ao longo do processo – e ainda teme o resultado do julgamento, mesmo com todas as evidências apontando para sua inocência.

Reconhecimento fotográfico como única prova

A vítima do sequestro relâmpago, uma mulher de 75 anos, havia sido forçada a sacar R$ 11 mil para os criminosos, e por meio de uma foto apresentada no celular de um dos investigadores da delegacia de Iguape, apontou Santos como um dos responsáveis. O procedimento realizado, porém, é alvo de críticas de especialistas e irregular segundo decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Além disso, especialistas ouvidos pela DW questionam outro fato: como a foto de Santos, que nunca havia sido fichado, fazia parte do arquivo policial?

"Inúmeras pessoas pretas e pobres foram reconhecidas e ainda têm sido reconhecidas como autores de delitos a partir de um reconhecimento que não constitui uma prova segura no processo penal e nem confiável", avalia o diretor do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), Antonio Pedro Melchior. Ele cita uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de 2021 contrária ao uso isolado do reconhecimento fotográfico como prova de um crime.

Em dezembro daquele ano, a sexta turma da corte decidiu, num julgamento de pedido de habeas corpus, que o reconhecimento fotográfico não serve "como prova isolada e única da autoria do delito, devendo ser corroborada por outras provas independentes e idôneas produzidas na fase judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa".

Naquela ocasião, o acusado de um assalto em Tubarão (SC) foi condenado em primeira e segunda instâncias apenas com base em reconhecimento fotográfico feito durante o inquérito. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) entendeu que seria perfeitamente possível o reconhecimento por foto no inquérito.

A resolução 484 de 2022 estabelece diretrizes para o trabalho de identificação de suspeitos. Uma das regras afirma que "a inclusão da pessoa ou de sua fotografia em procedimento de reconhecimento, na condição de investigada ou processada, será embasada em outros indícios de sua participação no delito, como a averiguação de sua presença no dia e local do fato ou outra circunstância relevante". Algo que no caso de Santos não foi seguido pela polícia civil paulista.

Clayton Ferreira Gomes dos Santos olha para a câmera
"Os policiais que me questionavam ficavam irritados quando eu não sabia informar o artigo pelo qual tinha sido preso temporariamente", relata Clayton Ferreira Gomes dos SantosFoto: Gustavo Basso/DW

Investigação questionável

Diretor presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), o advogado criminalista Guilherme Carnelós ressalva que o reconhecimento fotográfico pode servir de indício para a investigação, jamais como fundamentação para uma prisão.

"A prisão é a medida mais grave que um processo penal pode trazer, segundo a legislação brasileira. Como você aplica a medida mais grave com base no reconhecimento fotográfico, um mecanismo que é muito mais frágil que qualquer outra produção de prova?", destaca.

Tanto Melchior quanto Carnelós questionam os rumos da investigação, que não consideraram outros fatores, como testemunhas da presença do professor em aula na zona sul de São Paulo ou o uso da localização do celular de Santos como elementos contrários à acusação.

Consultada, a Secretaria de Segurança Pública responsável pelo distrito policial de Iguape, que comanda o inquérito, afirmou que "a autoridade policial reuniu o conjunto probatório e representou ao Judiciário pela prisão temporária dos investigados. O MP manifestou parecer favorável ao pedido, que foi concedido pelo juiz. Qualquer denúncia de irregularidade pode ser notificada à corregedoria da Polícia Civil".

Para Carnelós, MP e Tribunal de Justiça são igualmente responsáveis pela prisão considerada injusta.

"É muito fácil criticarmos a polícia e tirar da equação a responsabilidade do Ministério Público, que é o controlador externo da atividade policial, e do Judiciário, que é quem autoriza a prisão", afirma. "É o Ministério Público e o juiz que no final do dia devem olhar para aquilo que eles chamam de conjunto probatório e recusá-lo, já que há decisão do STJ proibindo a prisão baseada no reconhecimento fotográfico", explica Carnelós.

Questionado, o MP-SP afirmou que o processo corre em segredo de Justiça e disse que não comentaria o caso.

O julgamento do pedido de habeas corpus de Santos, de responsabilidade do desembargador Roberto Porto, entretanto, esclarece que o único elemento usado para o pedido de prisão foi a foto apresentada à vítima. Na decisão, Porto afirma que o reconhecimento pode ser utilizado como indício e ferramenta útil ao serviço policial, mas que, diante dos demais fatores, "os indícios de autoria se enfraquecem".

"Já passou o momento de falar de forma mais certa sobre a responsabilidade civil do Estado por erros Judiciários em especial os que decorrem de equívocos no reconhecimento de pessoas", defende o criminalista. "Nada é capaz de recompor os danos materiais e morais que essa pessoa está vivendo, mas alguma indenização tem de ser exigida do Estado."

Como é feito um álbum de suspeitos?

O que mais intriga os diretores dos organismos de avaliação do sistema criminal é como a fotografia de Santos – indivíduo negro que nunca havia sido preso – foi parar na delegacia de Iguape.

"O reconhecimento fotográfico no Brasil tem um problema endêmico que é o chamado álbum de suspeitos, um tipo de livro ou álbum composto, em sua maioria esmagadora, por pessoas pretas em estado de vulnerabilidade social", afirma Melchior, doutor em criminalística pela UFRJ.

Canelós explica que os álbuns são montados cada qual a seu modo, uma vez que não há nenhuma lei que preveja a sua criação ou os critérios utilizados para a inclusão das fotos, o que revela falta de transparência.

"Como a foto de um homem com uma conduta correta e sem antecedentes foi parar lá? Não dá para a gente ter um Estado que não explique para a população de forma geral como que ele age, isso é autoritarismo", avalia.

"Se é para ter um álbum de suspeitos, eu quero saber os critérios para sua criação e a fonte de cada uma das fotografias que o alimenta, porque também há outra questão agora: a foto do Clayton vai continuar lá?, questiona.

Em 2022, o IDDD de Carnelós publicou o relatório "Por que eu?", com a consulta de 1.018 pessoas em São Paulo e Rio de Janeiro. O estudo aponta que ser negro nos dois estados pesquisados significa ter risco 4,5 vezes maior de sofrer uma abordagem policial, em comparação com uma pessoa branca. Outro dado obtido foi que pessoas negras têm 2,4 vezes mais chance de terem seus documentos fotografados durante uma abordagem.

Em um dos casos relatados é de um carioca, chamado apenas de "Paulo". Negro, ele ficou quase quatro anos preso em virtude de 70 reconhecimentos. Canelós conta que um dia ele foi identificado dentro de um álbum de suspeitos, no qual constava uma foto sua retirada do Facebook. Segundo ele, nenhum juizado olhou para o caso com coragem até chegar no STJ.

"Hoje, em qualquer lugar que ele vai, tira uma foto e manda para amigos e parentes, para usar como comprovação caso seja novamente reconhecido em um álbum de suspeitos. Que tipo de vida é essa?", destaca Carnelós, que teme que algo parecido aconteça com Clayton dos Santos, cuja investigação será acessível em caso de abordagens policiais.

"Juridicamente, ele deve sair com as certidões de antecedentes limpas, mas fica lá o registro de que houve uma prisão, e aí ele tem que andar no bolso com uma cópia da decisão de absolvição. Ele vai ter que dar muitas explicações a vida toda sobre o fato de ter sido preso, infelizmente essa é uma realidade".

Realidade esta que Melchior avalia que não deve mudar tão cedo, apesar da  decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que proibiu, em julgamento no último dia 11 de abril, que abordagens policiais sejam feitas com base na raça, o chamado perfilamento racial, nem por sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física. Segundo a corte, as abordagens agora devem estar fundamentadas em elementos objetivos, como a posse de arma proibida, objetos ou papéis que constituam corpo de delito.

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