Pandemia precariza ainda mais o trabalho de entregadores
10 de julho de 2020Alessandro da Conceição Calado, conhecido como Sorriso, sai de casa por volta das 5h e só retorna às 18h. Durante a pandemia do novo coronavírus, a jornada de trabalho do entregador de empresas de aplicativos disparou, uma vez que profissionais como esse jovem de 27 anos tornaram-se essenciais no Brasil para distribuir alimentos, remédios e compras feitas pela internet. Mesmo assim, a sua remuneração caiu.
Com a demanda em alta, as principais empresas do setor – iFood, Rappi, Uber Eats e Loggi – ampliaram a quantidade de entregadores nas ruas, acirrando a "disputa" por corridas. Por isso, além de começar o dia mais cedo para enfrentar a concorrência em Brasília, Calado agora trabalha mais para ganhar o mesmo que recebia há alguns meses. Antes da pandemia, a sua meta diária de 200 reais era viável. Hoje, está difícil chegar a 100 reais, conta.
A dependência cada vez maior dos entregadores no período de isolamento social evidenciou a precarização das condições de trabalhado da categoria no país. Para fins fiscais, eles são autônomos e, em geral, não possuem proteções laborais ou seguros contra acidentes.
"Nossas vidas não têm importância nenhuma para essas empresas", diz Calado. "O que interessa para elas é o cliente. Somos descartáveis. Nós nos matamos de trabalhar, mas não conseguimos pagar as contas."
Aos 27 anos, Lauanda de Lima também enfrenta dificuldades para sobreviver com o salário de entregadora. Ela perdeu o emprego em marketing durante a pandemia e precisou achar uma forma de pagar mensalidades pendentes da faculdade. Está ganhando entre 60 e 80 reais por dia em corridas que atingiram valores "absurdos" na Grande São Paulo.
"Tem muita mão de obra, e as empresas estão diminuindo as taxas. Querem pagar 13 reais para um percurso de 18 km. Isso não cobre nem a gasolina", diz.
Prestando serviços essenciais na pandemia, os entregadores buscam melhores condições de trabalho. Na quarta-feira da semana passada (01/07), realizaram uma paralisação inédita em diversas cidades no Brasil, pedindo transparência nos pagamentos pelos aplicativos, aumento dos valores das entregas e o fim do sistema de pontuação que distribuiu as corridas. Uma nova paralisação está marcada para 25 de julho.
Não há dados oficiais concretos sobre o número de entregadores de empresas de aplicativos no Brasil. Mas, segundo a agência de notícias Reuters, somente a iFood conta com 140 mil cadastrados e 200 mil terceirizados que atendem diretamente restaurantes.
Rendimentos em queda
O estudo Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a covid-19, realizado por pesquisadores da Unicamp, do Ministério Público do Trabalho e da Universidade Federal do Paraná, entre outros, identificou jornadas de trabalho maiores e queda nos rendimentos de 58,9% dos entrevistados.
Antes da pandemia, 38,2% dos entregadores trabalhavam até oito horas por dia; 54,1%, entre nove e 14 horas; e 7,8%, acima de 15 horas. Durante a quarentena, 43,3% trabalhavam até oito horas diárias; e 56,7%, por mais de nove horas. Além disso, 78,1% faziam entregas em seis ou sete dias da semana. Foram entrevistadas 298 pessoas em 29 cidades por meio de um questionário online.
Segundo a pesquisa, cerca de metade recebia até 520 reais por semana antes da pandemia. Depois, 71,9% declararam receber até 520 reais, e 83,7%, até 650 reais.
"Ainda durante a pandemia, houve aumento de 100% dos que auferiam menos do que 260 reais por semana; redução de 35,9% para 14,8% dos que auferiam rendimento maior que 650 reais semanais", aponta o estudo.
Essa redução acentuada tem impacto direto na qualidade de vida dos entregadores. Lima, por exemplo, diz não ter condições de "pagar 20 reais em uma marmitex" para almoçar fora de casa durante o expediente, e Calado relata que um colega passou um dia todo sem comer porque recebeu apenas 30 reais.
No Brasil, iFood, Rappi, Uber Eats e Loggi dominam o mercado: 70,5% dos entrevistados trabalham para duas ou mais dessas plataformas.
"Essa empresas passam a deter todo o poder de definir o valor do trabalho. E como concorrem entre si, esse valor vai diminuindo. Os entregadores vão se tornando cada vez mais informais e sem garantias sobre a própria remuneração", avalia Ludmila Costhek Abílio, pesquisadora do Cesit e co-autora do estudo.
Outro fator relevante na precarização é o "gerenciamento algorítmico", pelo qual as empresas coletam dados do setor e de trabalhadores para calcular a distribuição de corridas, bonificações e outros fatores.
"Por exemplo, quando chove, o trabalhador vai para casa porque é arriscado. Então a empresa oferece bônus por corrida para engajá-lo. É uma novidade sem regras claras. Trabalha-se sem saber quais os critérios da remuneração. As regras vão mudando conforme alimentadas [por novos dados]", explica Abílio.
Com o discurso de que os entregadores são empreendedores e donos da própria agenda, as plataformas digitais se isentam de responsabilidades e custos trabalhistas. E podem aumentar as margens de lucro ao reduzir tarifas e aproveitar a oferta maior de mão de obra lançada no mercado pelo aumento do desemprego.
"As plataformas digitais trabalham com esse cenário de desigualdade social brasileira e faturam em cima dele", afirma o sociólogo Henrique José Domiciano Amorim, da Universidade Federal de São Paulo e coautor do estudo. "Alguns entregadores não têm condições de comprar os próprios alimentos porque a tarifa das plataformas não garante uma remuneração mínima para a sobrevivência."
Rankings
Calado já trabalhou para as principais empresas do setor, mas nos últimos anos têm focado em apenas um aplicativo. Como é comum um sistema de ranking nessas plataformas, os entregadores precisam acumular pontos para receberem mais corridas, que variam de 5 a 7 reais por entrega, de acordo com o jovem. Ele precisa fazer entre dez e 15 viagens por dia para conseguir 100 reais, mas essa quantidade depende de uma pontuação alta.
"Não dá para recusar nenhuma entrega. Quem não tem muitos pontos não pode nem folgar no fim de semana ou não pega entrega", afirma.
Trabalhando das 7h às 22h, Lima consegue cerca de cinco entregas de refeições na hora do almoço, se tiver "sorte". "Quando comecei na Rappi, me liberaram para trabalhar no fim de semana. Mas todas as regiões estavam fechadas porque eu não tinha pontos. Como é que vou pontuar se era a minha primeira corrida?", questiona.
O sistema de pontuação, afirma Amorim, viola a ideia de autonomia dos entregadores porque controla de maneira forçada o seu engajamento com os aplicativos.
"As empresas não nos deixam ser autônomos de verdade. Não podemos escolher entregas e nem quando trabalhar. Elas dão o preço de tudo, escolhem quem vai trabalhar e quem bloquear. Elas simplesmente bloqueiam o trabalhador sem qualquer justificativa", diz Calado.
"Se a gente não trabalha, não ganha nada. E mesmo se eu estiver disponível, não chega corrida para mim. Isso deveria ser melhor distribuído", afirma Lima.
Como não há vínculo empregatício com os entregadores, as plataformas digitais determinam as regras do jogo, ainda que com métodos questionáveis, afirma Abílio. "Vemos muitas coisas que parecem ilegais, mas em todo mundo ainda há dificuldades regulatórias. O sistema de pontuação é uma forma de manter o controle do trabalho."
Precarização mundo afora
Trabalhadores de plataformas digitais em outros países enfrentam um cenário similar de ausência de proteções, baixos salários e precarização. Um relatório do projeto Fairwork, ligado à Universidade de Oxford, no Reino Unido, mostrou que durante a pandemia metade desses "empreendedores" (incluindo motoristas e trabalhadores domésticos) teve suas atividades paradas por falta de demanda ou porque as empresas suspenderam suas operações.
O levantamento, feito em 120 plataformas de 23 países, aponta que os rendimentos caíram, em média, para "cerca de um terço" dos níveis pré-pandemia. Ainda assim, diz o estudo, "encontramos poucas evidências de tentativas de plataformas para compensar trabalhadores pela perda de ganhos decorrentes de impactos da covid-19". Houve apenas alguns casos de apoio de saúde.
"As respostas das plataformas atenderam acionistas, investidores e clientes antes dos trabalhadores. Muitas plataformas interpretam 'lavar as mãos' menos em termos de vírus e mais em termos de responsabilidades para com os trabalhadores, jogando essa responsabilidade de apoio financeiro aos governos", argumenta Mark Graham, diretor do Fairwork.
O projeto analisa se as empresas de aplicativos seguem padrões básicos de trabalho justo, como pagamento de salário mínimo local, proteção contra riscos e transparência nos termos dos contratos. A pontuação máxima é de 10 pontos. Antes da pandemia, a Uber Eats somou apenas três pontos na África do Sul e na Índia.
O Fairwork chegou ao Brasil recentemente e deve apresentar os primeiros relatórios no fim do ano. "Em outros países, as plataformas não têm atingido nem de longe o mínimo do trabalho decente. O que se pode ver, ainda sem resultados concretos das pesquisas no Brasil, é que há muitas semelhanças entre o entregador brasileiro e o de Chile, Equador, África do Sul", afirma Rafael Grohmann, coordenador do projeto para o Brasil.
Mudanças à vista?
A paralisação dos entregadores brasileiros interrompeu parte dos serviços dos aplicativos no país e chegou a parar o trânsito em partes de São Paulo. Mas ainda é cedo para saber se as empresas vão se sentir pressionadas a alterar seus modelos de gestão. "Por enquanto, não vemos mudanças de fato", diz Abílio.
Para Amorim, não há "a mínima possibilidade" de melhorias nas condições de trabalho, exceto se houver forte pressão dos entregadores e se as manifestações obtiverem êxito. "Precisamos fazer barulho. A paralisação da semana passada foi muito boa, mas muitos entregadores ainda não aderiram. Sem lutar, não vamos conseguir", defende Lima.
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