Há tempos uma frase de Tom Jobim não me sai da cabeça: "O Brasil não é para principiantes". Olhando ao meu redor, apenas confirmo o quão cirúrgicas são essas palavras, que por aqui já se tornaram um jargão: quando menos se espera, pá!, o Brasil te surpreende. E o mais curioso é que essa surpresa geralmente acaba te levando para um mesmo lugar.
Às vésperas do marco de um ano da chegada da pandemia de covid-19 ao Brasil, a ineficácia do planejamento do cronograma de vacinação seria, por si só, um fator de surpresa (e profunda indignação). Desde março de 2020, um dos grandes desafios enfrentados pela humanidade – em escala global – foi conseguir produzir uma vacina eficaz contra o novo coronavírus. E graças a um conjunto de esforços e ao empenho de milhares de médicos e cientistas, a humanidade (sim, a espécie humana) venceu esse desafio. Em tempo recorde, temos diferentes vacinas, cujo uso emergencial foi aprovado pela OMS.
O Brasil, com seu Programa Nacional de Imunização (integrado ao SUS), que sempre foi motivo de orgulho para os brasileiros e uma referência mundial, poderia vacinar 5 milhões de pessoas por dia, segundo estimativa da pesquisadora da Fiocruz Margareth Delcomo. Bastaria uma "decisão política" que garantisse as vacinas e o planejamento minucioso de como aplicá-las.
Quando as mortes pela covid-19 chegam a 250 mil, quando uma nova cepa do vírus é detectada no território nacional, quando a frouxidão do isolamento não é acompanhada por uma diminuição do número diário de mortos no país, era de se imaginar um esforço hercúleo das autoridades para garantir a vacinação em massa. A ausência dessa garantia deveria ser nosso único, ou então principal, assunto: estampado nas manchetes dos jornais, noticiado nos telejornais e rádios, viralizado nas redes sociais, tuitado e retuitado à exaustão.
Mas aí vem o Brasil e puxa nosso tapete.
Em meio ao caos deste início de 2021, os debates sobre a ineficiência do plano de vacinação no Brasil concorrem com as "tretas" do BBB21. A necessidade de uma válvula de escape num momento de crise poderia ser um argumento poderoso para compreender a audiência recorde do programa. Mas esta edição tem um ingrediente a mais: o racismo e as disputas sobre quem controla o seu debate.
Muitos brancos descobriram o racismo estrutural em plena pandemia
O ano de 2020 foi marcado pela ampliação significativa da discussão sobre o racismo no Brasil, em consonância com o movimento estadunidense #BlackLivesMatter [vidas negras importam, em tradução livre]. Ainda que não seja nenhuma novidade para boa parte dos negros e negras brasileiros, por aqui, uma parcela da população branca parece ter sido apresentada à dimensão estrutural do racismo em plena pandemia do coronavírus.
E mesmo que a compreensão do racismo estrutural seja comprometida pelo próprio racismo estrutural, o país que até pouco tempo atrás não se reconhecia como tal passou a dar os primeiros passos em direção à aceitação de sua natureza racista. Isso se desdobrou no mercado editorial, nas pautas jornalísticas, no aumento e reconhecimento de figuras públicas negras formadoras de opinião e, ao que tudo indicava, na escolha dos participantes do BBB21, edição com o maior número de negros da história.
Só que lembremos: o Brasil não é para principiantes.
O comportamento de parte dos integrantes negros do programa se revelou uma contradição abissal em relação às expectativas sobre negros engajados na luta antirracista. Aqui, não me interessa analisar a conduta dos participantes negros, pois as ações desses homens e mulheres revelam que, pasmem!, a população negra não é apenas múltipla e diversa, mas também complexa e contraditória – características inerentes a todo ser humano.
BBB21 e o debate enviesado sobre o racismo
Pensando na longa duração da história brasileira e no fato de o racismo ser, antes de mais nada, um sistema de poder, o fundamental a saber é: a quem interessa desqualificar a discussão sobre o racismo no Brasil?
O BBB é um programa que escolhe seus participantes e, consequentemente, as narrativas que serão expostas para milhões de telespectadores. Não se trata da "vida como ela é", ou do "Brasil real". E, sim, daquilo sobre o que se escolhe falar e daquilo sobre o que se silencia. Mesmo tendo incorporado – na superfície – os debates mais recentes, o BBB21 se mostrou mais um produto bem-acabado do racismo brasileiro.
O racismo não é nem deve ser encarado como uma tendência, uma moda que dá e passa. O racismo, esse sim, é a "vida como ela é", o "Brasil real". E não sejamos ingênuos: os responsáveis por implementar políticas ineficazes de imunização e aqueles que produzem programas como o BBB sabem disso. Em ambos os casos, e não por acaso, os lugares sociais e políticos edificados pelo e com o racismo, permanecem os mesmos. Não é mera coincidência que, no Brasil, a pandemia mate mais negros, ao mesmo tempo que a rejeição desse segmento da população bate recordes no reality show.
Por isso, é importante que estejamos atentos e dispostos a enxergar o avesso desse mesmo lugar.
---
Mestre e Doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.