O grito "independência ou morte!" marcou um novo tempo na história do Brasil. Naquele 7 de setembro de 1822, D. Pedro, até então Príncipe Regente, marcava a emancipação política do território que pertencia a seu pai. O feito foi muito menos pomposo do que o quadro pintado por Pedro Américo em 1888, justamente um ano antes da queda do Império do Brasil. O grito às margens de um rio pouco caudaloso – muito diriam que não passava de um córrego – não fora ensaiado. Foi quase um rompante do príncipe, agora imperador, tomando as rédeas de uma independência que já havia sido assinada por sua esposa dias antes, uma informação quase esquecida num país que insiste em silenciar a atuação das mulheres.
Gerações e mais gerações de brasileiras e brasileiros foram ensinados a pensar a Independência do Brasil tendo o 7 de setembro como seu começo, meio e fim. Uma Independência ou Morte!, que na realidade foi construída anos depois, que pouco fala sobre o complexo e intrincado processo que culminou na emancipação e soberania deste país, que a partir de então passou a se chamar Brasil.
É uma versão dos fatos marcada por o que se tornou praxe ao contar a história do Brasil: a passividade do brasileiro, sobretudo do povo, formado pelo harmonioso encontro das três raças. Uma grande e redonda mentira.
Resposta a um anseio antigo
Não foi por acaso que D. Pedro I bravejou Independência ou Morte! naquele 7 de setembro. Ele sabia muito bem o quão esquentados estavam os ânimos de seus súditos. Sabia também que, num tempo não muito longínquo, esses mesmos súditos haviam ousado pensar um país independente e soberano. Por vezes, um país republicano – como na Inconfidência Mineira (1789), na Conjuração Baiana (1798), e na Revolução de Pernambuco (1817). Em momentos mais audaciosos, um país sem escravos.
Mas não foi isso que aconteceu. O 7 de setembro de 1822 foi também a escolha por uma Monarquia – que tinha a particularidade de ser um quarto poder – cuja base social era composta por milhares de escravizados, africanos e nascidos no recém-criado país. Como bem disse o historiador Luís Felipe de Alencastro, o Brasil nasceu apostando na escravidão, projetando-a no seu futuro.
Uma aposta que explica muito o Brasil de hoje e os significados que estão tentando atribuir a este 7 de setembro. Um Brasil forjado pelo e para os interesses de uma classe política e econômica muito bem desenhada, que fez tudo o que estava ao seu alcance para manter seus privilégios e propagar sua visão de mundo, que entendia a população branca como a única detentora do poder e do próprio fazer histórico. Um país para poucos. Os mesmos poucos de sempre.
Mas a questão é que houve independência, e houve morte! Porque não foi apenas a elite econômica e política que desejou uma nação soberana. O povo também a queria. E mais, o povo – esse ser amorfo, heterogêneo, polifônico e profundamente poderoso – lutou por essa liberdade, disputando à unha os possíveis sentidos que ela poderia ter.
Muita gente morreu pela independência
É extremamente significativo que tenhamos aprendido tão pouco sobre as Guerras de Independência no nosso próprio país. Como se elas nunca tivessem existido. Mas se nossa soberania foi mais do que um grito, foi porque teve gente lutando e morrendo em nome dela. Piauí, Rio de Janeiro, Maranhão, Bahia. Essas foram algumas das localidades brasileiras nas quais o povo não branco deu novos sentidos para o Brasil, mostrando que o 7 de setembro de 1822 só perseverou graças à luta pela independência da Bahia, que começou em 1822 e culminou no 2 de julho de 1823.
Homens e mulheres, negros, indígenas, mestiços, pobres e nem tão pobres fizeram com que o 7 de setembro se transformasse na nossa primeira data cívica. Foram eles que lutaram, sangraram e, por vezes, morreram por um país que insiste em enterrar seus conflitos e enfrentamentos.
Controlar o passado é uma forma eficaz de definir o futuro. Essa é uma das mais antigas estratégias de exercício de poder. Por isso, precisamos revisitar o passado com criticidade. Porque munidos de um olhar apurado, e de novas perguntas, vamos escutar as vozes de Maria Felipa, uma mulher negra que liderou mais de 200 pessoas contra os portugueses nas batalhas travadas na ilha de Itaparica, Bahia. Ou então ouviremos Joana Angélica, uma senhora branca, pertencente a uma ordem religiosa, que morreu em nome da independência do Brasil. Ouviremos também as vozes de Francisco Montezuma e de seus comparsas, muitos homens negros, que queriam que a liberdade do Brasil se estendesse à população escravizada.
Como bem disse o samba-enredo da Mangueira, vencedor do Carnaval de 2019, ao procurarmos "a história que a história não conta, o avesso do mesmo lugar", veremos que um outro 7 de setembro pode e deve ser nosso. Lutemos por ele.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
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