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Os impactos do plantio de cana na Amazônia e no Pantanal

12 de novembro de 2019

Bolsonaro revogou um decreto de 2009 que impedia a expansão da cana-de-açúcar para áreas sensíveis. Enquanto indústria minimiza efeitos da medida, especialistas expressam preocupação com impactos ambientais e econômicos.

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Mulher corta cana-de-açúcar em plantação em Guariba, no estado de São Paulo
O cultivo de cana para etanol se concentra atualmente na região Centro-Sul do país, sobretudo no SudesteFoto: Getty Images/AFP/ N. Almeida

O governo federal revogou, na semana passada, um decreto de 2009 que estabelecia o zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar e impedia a expansão do cultivo para áreas sensíveis. A decisão gerou preocupação pelos possíveis efeitos em biomas como a Amazônia e o Pantanal, mas também pelo viés econômico, já que esse mecanismo de proteção ambiental impulsionou a aceitação do etanol de cana brasileiro no mercado internacional.

Sob o decreto extinto em 6 de novembro, havia sido delimitada uma área de 64 milhões de hectares como apropriada para o plantio de cana-de-açúcar, correspondente a 7,5% da superfície do país e quase oito vezes maior que a atual área plantada para fins energéticos.

O cultivo de cana para etanol se concentra atualmente na região Centro-Sul do país, sobretudo no Sudeste. A área ocupada para essa finalidade na Amazônia corresponde a apenas 144 mil hectares, 1,5% do total permitido, concentrada no sul do Mato Grosso.

Especialistas apontam que a Amazônia e o Pantanal, biomas protegidos pelo zoneamento, não apresentam condições favoráveis para o desenvolvimento da cana-de-açúcar.

Em artigo publicado na revista Science, principal periódico científico internacional, os pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) Lucas Ferrante e Philip Fearnside esmiuçaram os possíveis efeitos ambientais do fim do zoneamento da cana.

O texto chamava atenção para o chamado efeito de borda desse cultivo. Mesmo que realizado em áreas degradadas, seus danos podem se estender por até um quilômetro dentro de áreas florestais adjacentes aos locais de produção, com impactos negativos sobre a flora e a fauna.

Com base no que se observou pela expansão da soja, que substituiu pastagens e outros cultivos, os cientistas também alertaram para o potencial risco de desmatamento, visto que, com a chegada da cana, a pecuária e outras atividades seriam deslocadas para outras áreas. Sendo a Amazônia a última fronteira agrícola do país, o avanço se daria sobre o bioma.

O artigo foi publicado na Science em março do ano passado, mesmo mês em que o senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) apresentou um projeto de lei que visava a liberação do cultivo na Amazônia. À época, a própria União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) se posicionou contra a medida.

Na ocasião, a entidade manifestou preocupação com o impacto que o fim do zoneamento poderia ter sobre a imagem do etanol no exterior, já que o decreto de 2009 era tido como um selo de sustentabilidade da produção brasileira.

Agora, nesta nova etapa do debate, o setor reviu sua posição. Segundo o novo entendimento da Unica, a salvaguarda oferecida pelo decreto já é contemplada no Código Florestal de 2012 e nas exigências de desmatamento zero do programa RenovaBio – política instituída em 2018 e que visa aumentar a produção e consumo de biocombustíveis no Brasil a fim de cumprir os objetivos ambientais do Acordo de Paris até 2030.

"A revogação do zoneamento em nada vai mudar as práticas sustentáveis do setor. É prioridade para as empresas representadas pela Unica seguir os altos padrões de sustentabilidade exigidos por nossos compradores", garante Evandro Gussi, presidente da organização.

"Da parte das empresas associadas à Unica, nada muda. Continuaremos produzindo na região Centro-Sul, a mais de 2 mil quilômetros do bioma Amazônia, preservando a mata e os recursos hídricos dentro de nossas propriedades, em linha com o estipulado pelo RenovaBio e as demais leis."

A linha de argumentação é a mesma adotada pelo Ministério da Agricultura (Mapa), que associou a medida ao objetivo de desburocratizar e simplificar o plantio de cana-de-açúcar.

No final de agosto, quando a Amazônia registrou uma grave onda de queimadas, o presidente Jair Bolsonaro chegou a falar que atenderia a um pedido da ministra Tereza Cristina para ampliar as áreas de plantio e que estava ciente da possibilidade de haver uma repercussão negativa.

"Medida beneficia 1,5% da produção e coloca em risco 98,5%"

Dadas as condições desfavoráveis para a cana na Amazônia, a adoção da medida gerou inquietação entre especialistas. Entre eles, Raoni Rajão, professor associado de Gestão Ambiental e Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

"A partir do momento que você vincula a cadeia da cana-de-açúcar com o desmatamento na Amazônia – mesmo que seja, inicialmente, uma percentagem pequena ­–, a cadeia é poluída e exposta a pressões que não existiam anteriormente. Você beneficia 1,5% da produção de cana e coloca em risco 98,5%. Não faz sentido, do ponto de vista econômico", avalia.

"Como o Brasil está competindo, nesse caso, com o etanol de milho dos Estados Unidos, isso certamente nos coloca em uma situação mais frágil ante alguns mercados. O mesmo ocorre com o açúcar, que concorre com o de beterraba europeu e de milho dos Estados Unidos", complementa.

Rajão, que já atuou como consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), lembra que o fim do zoneamento implica a revogação dos pressupostos pelos quais a União Europeia (UE) calculou a cota de exportação sul-americana de etanol para o bloco europeu nas tratativas do Acordo de Paris.

O pesquisador aponta fragilidades nos argumentos do governo e do setor sucroalcooleiro. Embora reconheça a importância do RenovaBio, Rajão lembra que a adesão ao programa é voluntária.

Além disso, as exigências do programa recaem sobre a produção, e não sobre o imóvel rural como um todo. Ou seja, é possível que um produtor desmate ilegalmente desde que preserve a área destinada ao etanol.

"Caso haja uma grande expansão ilegal da cana na Amazônia, daqui a dois ou cinco anos, bastará uma canetada muito simples do ministro para permitir que essas áreas possam vender e obter crédito do RenovaBio, o que expõe a fragilidade desse instrumento. Finalmente, se o setor não quer expandir a cana na Amazônia, por que o decreto foi revogado?", indaga o pesquisador.

A medida também é questionada por Luiz Augusto Horta, coordenador do Programa Fapesp de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) e consultor em assuntos energéticos para a Comissão Econômica das Nações Unidas para América Latina e Caribe (Cepal).

O cientista acredita que os mecanismos previstos no Código Florestal e no RenovaBio serão eficazes para restringir a expansão dos canaviais em áreas sensíveis. Porém, lembra que o zoneamento foi elaborado sob diversos critérios após estudos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que levaram em conta clima, solo, topografia, outros usos e áreas protegidas.

"Não conheço estudos revisando esses critérios e tampouco há necessidade de novas fronteiras para a cultura da cana. Considero essa medida inadequada, principalmente na forma intempestiva e pouco articulada em que foi decidida", avalia Horta.

"Se existem fundamentos para que novas áreas sejam abertas, o Mapa deveria ter apresentado seus estudos e resultados, eventualmente ajustando o zoneamento, que foi um sinalizador importante para o mercado global dos requisitos de sustentabilidade na expansão da cultura da cana."

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