Sociedade perfeita
3 de dezembro de 2011Polyphonia: polifonia, “variedade de sons” em grego. O nome do grupo berlinense ganha novo sentido durante sua estada em Salvador da Bahia. Das diversas salas de aula e ensaio e dos corredores do Teatro Castro Alves saltam trechos de obras clássicas, sobrepostos e combinados num alegre caos de oboés, clarinetes, violinos, violoncelos e outros instrumentos orquestrais.
Essa mata tropical de músicas faz parte do dia a dia nos Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis da Bahia (Neojibá), que mantêm suas dependências na grande e moderna casa de espetáculos da capital baiana. Criado em 2007 pelo pianista e regente Ricardo Castro, o programa se apoia na experiência de El Sistema, de José Abreu, que há quase quatro décadas forma músicos e capacitadores na Venezuela.
Da mesma forma que seu antecessor venezuelano, o Neojibá aposta no poder transformador da música, sobretudo quando praticada em grupo, no contexto de uma orquestra ou coro. Castro explica que o projeto “transforma as vidas das crianças ao instilar conceitos de responsabilidade, trabalho em equipe, respeito e discipiina, aliados a beleza e alegria”.
Frutos de "El Sistema"
Ao contrário da atitude individualista que caracteriza a educação musical tradicional, a formação dos iniciantes fica basicamente a cargo de monitores – ou seja, jovens instrumentistas, mais adiantados. A comunicação de know-how musical transcorre, assim, não de forma vertical – do onissapiente professor para o aluno dependente – mas sim em diagonal, entre colegas, numa relação em que solidariedade e respeito mútuo são indispensáveis. E cada novo músico adquire o potencial de criar uma nova orquestra, numa “multiplicação ad infinitum”, explica Castro.
Naturalmente é também importante que, de tempos em tempos, músicos experientes supervisionem esse processo, identificando eventuais vícios e ajudando a evitar atalhos equivocados, com base numa longa experiência profissional. É neste papel que seis músicos do Polyphonia Ensemble visitam o Neojibá durante cinco dias, com o apoio da emissora Deutsche Welle e do Ministério alemão das Relações Exteriores.
Em classes individuais e coletivas, Martin Kögel (oboé), Richard Obermeyer (clarinete), Jörg Petersen (fagote), Johannes Watzel (violino), Henry Pieper (viola) e Thomas Rösseler (violoncelo) escutam os jovens estudantes e os ajudam a vencer suas atuais dificuldades técnicas e interpretativas. O repertório estudado vai de peças solo e de câmara a partes orquestrais.
No momento, os integrantes da Orquestra Juvenil da Bahia (OJB) se dedicam com intensidade especial ao concerto que dividem com o Polyphonia Ensemble Berlin neste sábado (03/12) no Teatro Castro Alves. A expectativa é de casa lotada, pois um dos efeitos da recente valorização do projeto, também no exterior, é o surgimento de um “público totalmente renovado” em Salvador, anuncia o mentor Ricardo Castro. “Famílias que nunca haviam escutado uma orquestra ou ido ao teatro agora são fãs. A nossa Orquestra Juvenil é uma popstar na cidade”, diz ele.
O programa da noite é "médio-pesado", incluindo movimentos da Sinfonia Inacabada de Franz Schubert, da Sinfonia nº 4 de Piotr Tchaikovsky, e do balé Romeu e Julieta de Serguei Prokofiev. À frente da orquestra encontra-se, justamente, um “filho” de El Sistema: o shooting star Manuel López Gómez. A carreira do venezuelano de 28 anos está indissoluvelmente ligada à instituição sediada em Salvador, já que foi Gómez a reger o primeiro concerto da OJB, em 2007.
Criando beleza
Assistir aos encontros entre os instrumentistas vindos de Berlim e os alunos do Neojibá é, por vezes, como presenciar um pequeno milagre. Numa das salas, o fagotista Jörg Petersen toca um duo com uma jovem estudante, e vai lhe sugerindo pequenas alterações em sua forma de interpretar.
“Essas notas mais curtas. Espere mais um pouco para começar essa passagem. Agora faça esse crescendo com coragem, aqui você é a solista!”. O professor demonstra, um colega da jovem traduz os comentários do inglês. E em poucos minutos as notas no papel vão se transformando de exercício digital em música de verdade. Os sorrisos orgulhosos do alemão e da fagotista baiana selam a conquista.
Independentemente dos diferentes níveis de técnica e talento – e este não falta! –, uma característica une todos os participantes do Neojibá, sem exceção: o entusiasmo. Nesse ponto, os seis músicos do Polyphonia Ensemble são unânimes. Mesmo eles, que já viajaram pelos Bálcãs, pelo Magrebe e pelo Oriente Médio em projetos semelhantes, raramente presenciaram, assim em massa, tamanha vontade de aprender, curiosidade e receptividade para os estímulos novos. Esse entusiasmo é contagiante e inspira os instrumentistas alemães através da jornada diária de até 11 horas de aulas e ensaios, com todo o calor de Salvador da Bahia e ocasionais panes de logística.
É gigantesco o aparato – administrativo, pedagógico, organizacional – necessário a criar esse ambiente tão estimulante e criativo. Mas o retorno – em termos sociais, humanos, espirituais – justifica plenamente todos os esforços. Para Castro, que também atua como maestro, “a própria dinâmica da orquestra faz com que todos sintam que cada um é importante, e que a meta é criar beleza”. Aqui se vivencia um modelo ideal de sociedade: “Se a sociedade em que vivemos fosse como uma orquestra, tudo estaria resolvido”, afirma o criador do Neojibá.
Autor: Augusto Valente
Revisão: Soraia Vilela