O respeito à dignidade de todo e qualquer ser humano é parte fundamental da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Entretanto, no mundo do futebol e recentemente, em especial no europeu, talvez seja um dos direitos mais vilipendiados. Vinícius Júnior que o diga. Insultar uma pessoa em coro chamando-a de macaco equivale a privá-la de sua dignidade como ser humano e viola os seus direitos mais elementares.
Não é de hoje que nos estádios de futebol e arredores podem ser vistas cenas deprimentes protagonizadas por pessoas que frequentam jogos de futebol com o objetivo de extravasar seus preconceitos. Não vão ao estádio para torcer por este ou aquele time, mas para dar vazão à violência reprimida por frustrações acumuladas em sua vida cotidiana.
Racismo e violência no futebol europeu
Violência verbal de teor racista como a sofrida por Vini Jr., como é conhecido popularmente, não é rara em campos europeus, tidos como crème de la crème do futebol mundial. Setores da torcida organizada do clube italiano Lazio, por exemplo, se caracterizam por seu racismo e sua xenofobia, além de não fazer segredo do seu ideário fascista.
Na Bundesliga, da Alemanha, houve casos de infiltração de extremistas de direita nas torcidas organizadas de alguns clubes, como na do Borussia Dortmund, em 2012. Graças à pronta intervenção da diretoria do clube em conjunto com uma força-tarefa da polícia, a tentativa de minar as torcidas organizadas com ideias racistas e xenófobas foi extinta no nascedouro e não germinou.
O futebol inglês, por sua vez, lutou durante muito tempo com a violência praticada pelos hooligans dentro e fora dos estádios. Em 1985, foi preciso acontecer a tragédia de Heysel, que resultou em 39 mortes e centenas de feridos na final da Champions League entre Juventus e Liverpool, para que uma atitude fosse tomada. E a medida adotada pela Uefa foi draconiana: baniu o futebol inglês dos torneios europeus por cinco temporadas.
Naquela época, a Inglaterra tomou as providências necessárias e implementou uma política a ferro e fogo em todas as esferas envolvidas para banir os hooligans e sua violência dos estádios. Os resultados todos conhecem – os estádios voltaram a ser palco de jogos de futebol em vez de batalhas campais.
Vini Jr. e o horror racista
Depois da partida Valencia 1 x 0 Real Madrid, o técnico do clube madrilenho, Carlo Ancelotti, foi enfático: "Não vou falar sobre futebol agora porque nunca vi um estádio inteiro agredir verbalmente um jogador com gritos de insultos racistas". E acrescentou: "A LaLiga tem um problema, não Vinícius. Nunca vi nada parecido."
Ancelotti tem 63 anos e deve ter visto muita coisa no mundo do futebol. Mas nada que se compare a dezenas de milhares gritando em uníssono "Mono, mono, mono" (macaco, em espanhol).
Para Vini Jr. deve ter sido um trauma extremo do qual certamente não se recuperará tão cedo.
O racismo manifestado publicamente por dezenas de milhares no estádio Mestalla, em Valência, aparentemente se tornou socialmente aceitável na LaLiga. O Mestalla agora ostenta uma mancha do horror racista da qual não vai se livrar impunemente.
A agressão sofrida por Vini Jr. é "apenas" mais um capítulo de uma caçada vil ao jogador orquestrada por grupos de torcidas organizadas racistas e xenófobas.
Segundo levantamento do jornal espanhol As, desde 2021 Vinícius Júnior foi vítima de dez episódios de racismo e ódio em estádios na Espanha. Oito teriam sido na atual temporada. E até agora nenhuma medida concreta foi tomada, seja pela Federação Espanhola de Futebol, seja pela LaLiga, seja pelos clubes. Todos esses ataques foram tratados como meros casos isolados, acabando relegados às tradicionais notas de repúdio.
A responsabilização jurídica pelos crimes raciais cometidos, pelo menos até agora, não foi adiante. Nesta terça-feira (23/05), a polícia espanhola finalmente deteve sete pessoas suspeitas de participar de atos racistas contra o jogador brasileiro.
O que a Uefa vai fazer?
No caso dos hooligans ingleses da década de 1980, a Uefa tomou uma medida drástica e baniu os clubes do país dos campos europeus por cinco anos.
Agora, o perigo maior para o futebol do continente não é mais o hooliganismo. É o racismo, sra. Uefa, que está se tornando o grande problema do futebol europeu nosso de cada dia.
E como perguntar não ofende, pergunto: o que a sra. vai fazer a respeito?
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Gerd Wenzel começou no jornalismo esportivo em 1991 na TV Cultura de São Paulo, quando pela primeira vez foi exibida a Bundesliga no Brasil. Atuou nos canais ESPN como especialista em futebol alemão de 2002 a 2020, quando passou a comentar os jogos da Bundesliga para a OneFootball de Berlim. Semanalmente, às quintas, produz o Podcast "Bundesliga no Ar".
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