Por que lembramos o 4 de junho
4 de junho de 2019Lembramos o 4 de junho porque Jiang Jielian tinha 17 anos. Ele ainda tem 17 anos. Ele sempre terá 17 anos. Porque as pessoas que estão mortas não envelhecem.
Lembramos o 4 de junho porque as almas perdidas que assombraram Liu Xiaobo até ele morrer também nos assombrarão até morrermos.
Lembramos o 4 de junho porque a luz do fogo nas baionetas é algo que ninguém pode esquecer. Mesmo que ele próprio não a tenha visto.
Lembramos o 4 de junho porque ele nos revelou a verdadeira natureza do Partido Comunista da China. Nenhum livro, nenhum filme, nenhum museu poderia tê-lo feito de forma mais vívida.
Lembramos o 4 de junho por causa dos simples trabalhadores que morreram. Não recordamos os nomes da maioria deles, porque nunca soubemos os nomes da maioria deles. Mas lembramos deles como pessoas. E lembramos que nunca soubemos os seus nomes.
Lembramos o 4 de junho porque ele contém os piores lados da China – mas também os melhores lados da China.
Lembramos o 4 de junho porque houve um massacre – não apenas uma "batida", um "incidente", um "evento", um "shijian”, um "fengbo”.
Não foi uma revolta contrarrevolucionária. Não é uma memória distorcida. Ou, como uma criança na China de hoje talvez possa pensar, que este acontecimento sequer aconteceu. Foi um massacre.
Lembramos o 4 de junho, porque foi, como o professor chinês Fang Lizhi apontou com sua própria sabedoria, o único caso conhecido por ele em que uma nação atacou a si mesma.
Lembramos o 4 de junho porque queremos saber o que os soldados assassinos se lembram. Eles foram submetidos a uma lavagem cerebral nos arredores da cidade antes de cumprirem as ordens mortais. Então eles também foram vítimas. Não sabemos o que pensavam então. Mas lembramos disso porque queremos saber.
Lembramos o 4 de junho porque Ding Zilin ainda está viva. Ela tem 82 anos. Quando sai de casa, policiais com roupas civis a acompanham por segurança. Segurança para ela? Não, segurança para o Estado. Sim, é verdade: um regime com um PIB de 100 trilhões de yuanes e dois milhões de soldados tem de se proteger de uma mulher de 82 anos, das suas ideias. Devíamos sempre nos lembrar disso.
Lembramos o 4 de junho para apoiar outros que se lembram. Lembramos sozinhos. Mas também nos lembramos juntos.
Lembramos o 4 de junho porque a lembrança faz de nós pessoas melhores. A lembrança é do nosso próprio interesse. Quando os políticos falam de "interesses", referem-se a interesses materiais. Mas os interesses morais são igualmente importantes – não, são mais importantes. Mais importante do que ter um iate.
Lembramos o 4 de junho porque foi um ponto de guinada histórico para um quinto do mundo. Uma guinada numa direção assustadora. Esperamos que não tenha sido uma guinada desastrosa para o mundo inteiro. Mas isso não sabemos. Veremos.
Lembramos o 4 de junho porque, se não nos lembrássemos, não teríamos ideia. Poderíamos ter inventado isso? Não.
Lembramos o 4 de junho porque há pessoas que querem que nos lembremos dele. Para elas é confortante saber que estamos pensando nisso.
Lembramos o 4 de junho porque também há pessoas que querem que não nos lembremos dele. Querem que esqueçamos. Porque o esquecimento tem o seu poder político. Que jogo horrível! Temos de nos opor a este poder, mesmo que recordar o massacre seja a única forma de fazê-lo.
Lembramos o dia 4 de junho para que não nos esqueçamos de como o governo chinês mente para si próprio e para os outros. Ele diz que o povo chinês há muito tempo fez o "julgamento certo sobre a revolta contrarrevolucionária na Praça da Paz Celestial em 1989".
Mas todos os anos, no dia 4 de junho, a polícia com roupas civis impede as pessoas de entrar na praça. Por quê? Por quê? Se, como afirma o governo, os chineses acreditam em tudo isso, por que não deixar que o povo da praça condene os contrarrevolucionários? A presença da polícia mostra que o regime não acredita nas suas próprias mentiras.
Lembramos o 4 de junho porque tais eventos mexem com o cérebro humano durante muito tempo. Mesmo que tentemos, não podemos esquecer!
Perry Link é professor de Literatura Comparada e Línguas Estrangeiras na Universidade da Califórnia, nos EUA. Foi anteriormente professor de Estudos da Ásia Oriental na Universidade de Princeton. É especialista em língua e literatura chinesas. Link esteve envolvido na tradução dos chamados "arquivos de Tienanmen", uma coleção de documentos secretos que teriam sido produzidos pelo governo chinês após o massacre de 1989.
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