A partir desta quarta-feira (30/12), a Argentina é outra. Finalmente, a razão prevaleceu sobre as questões de fé. A legislação foi feita com base em realidades. Porque o dilema não era "aborto sim ou não", mas sim resolver um problema de saúde pública e possibilitar o acesso ao aborto legal, seguro e gratuito para as mulheres. Esse foi o espírito da luta feminista que abriu uma discussão sem paralelo na sociedade argentina e que finalmente se refletiu na lei da interrupção voluntária da gravidez até a 14ª semana de gestação, aprovada nesta quarta-feira pelo Senado.
Um dia para a história: o Estado laico argentino endossou a expansão dos direitos civis para uma sociedade mais igualitária. O fim de uma prática que expõe mulheres, jovens e meninas ao perigo de morte, em leitos ilegais da clandestinidade, especialmente as mais pobres e vulneráveis. De acordo com dados oficiais, o país realiza entre 350 mil e 500 mil abortos em condições inseguras por ano. Nos últimos 40 anos, mais de 3 mil mulheres morreram na Argentina em decorrência de aborto.
Proibir o aborto e criminalizar as mulheres não conseguiu erradicá-lo. Pelo contrário, em países da Europa Ocidental, como Bélgica ou Holanda, o aborto não disparou nas estatísticas pelo fato de ser legal.
Um debate de cores e sem partidos
A democracia triunfou, porque não era um projeto de bandeira política. Os senadores votaram transversalmente, pelo sim e também pelo não, sem atender a orientações de seus partidos, como nunca havia acontecido na história argentina. E isso foi uma conquista das mulheres.
A aprovação da lei foi resultado de um voto consciente em apoio a uma demanda cidadã, que unia em uma mesma causa legisladores de lados opostos. Que este debate lance as bases para futuros compromissos com uma Argentina sem trincheiras que opte por deixar para trás as divisões políticas.
A sociedade argentina amadureceu. No entanto, também apareceram resquícios antidemocráticos dos setores antiaborto, agrupados na cor azul, que intimidavam e ameaçavam os parlamentares. E tampouco faltou o lobby da Igreja Católica, que tentava distorcer vontades políticas com encontros secretos e homilias à "Santíssima Virgem" e por meio de mensagens no Twitter do papa argentino a partir do Vaticano.
E por fim, virou lei
A aprovação da lei de interrupção voluntária da gravidez é, sem dúvida, um ponto para o presidente Alberto Fernández, que foi quem promoveu pessoalmente o projeto legislativo, e chega como um alento após um ano de pandemia e crise econômica.
Quem ganhou foi a Argentina, que hoje é um pouco mais justa. Ganhou a democracia, porque, dos 38 votos a favor, 12 eram da oposição. Mas a maior vitória pertence às mulheres que ousaram ser protagonistas da mudança nas ruas e assinar esta página da história.
Verónica Marchiaro é jornalista do Departamento América Latina da DW. O texto reflete a opinião pessoal do autor, e não necessariamente da DW.