Quando se trata de política, muitos europeus acreditam que a diferença entre os Estados Unidos e a Europa seja análoga àquela entre o futebol europeu e o americano: como seu futebol, a democracia dos americanos é um jogo para iniciados. Seu sistema eleitoral, em que o candidato que perde o voto popular pode facilmente conquistar a Casa Branca, provavelmente faz todo sentido para eles, mas para mais ninguém.
Apesar das diferenças, entretanto, algumas das lições das eleições nos EUA são bastante relevantes para a Europa. Em sua peça teatral Jumpers, de 1972, o dramaturgo britânico Tom Stoppard sugere, jocosamente: "Não é a votação que faz a democracia, é a contagem." A eleição de 2020 provou que ele tinha razão.
A democracia é um sistema em que, ao aceitar a derrota, o perdedor legitimiza o resultado da eleição. Os ataques do presidente Trump à idoneidade do pleito não só danificam a reputação dos EUA, mas podem ser um presságio do que está por vir: uma proliferação de eleições contestadas, não só nos Estados Unidos, mas também no exterior.
Democracia não é garantia contra divisão
Para partidários políticos em estados divididos, a ameaça mais existencial à democracia não é a ruptura das regras estabelecidas, mas a vitória da outra facção. E muitos estão mais e mais preparados para incendiar a casa, de forma a evitar que o outro lado assuma o poder. Em tal clima, há o risco de instituições imparciais, como tribunais, bancos centrais e a livre imprensa, serem instrumentalizadas politicamente.
A eleição americana também nos adverte que, mesmo nas sociedades mais devastadas pela pandemia, é mais provável os choques e perdas causados pela crise do coronavírus intensificarem as divisões existentes, do que proporcionarem unidade nacional e propósito coletivo.
Uma análise da agência de notícias Associated Press revelou que, de 376 distritos americanos com a mais elevada taxa per capita de casos de covid-19, a maioria esmagadora, 93%, votou em Trump. Os europeus devem ver os eventos nos EUA como uma advertência. Se os confinamentos forem prolongados, e as economias, paralisadas, nossas sociedades podem começar a se assemelhar ao caos explosivo que estamos vendo nos EUA.
Embora se costume louvar a genialidade da democracia em suplantar divisões nas sociedades modernas, a experiência americana dos últimos quatro anos revelou que a política democrática também é capaz de solidificar e intensificar essas divisões. As eleições expuseram o fato que democratas e republicanos não são apenas dois partidos políticos: eles se tornaram dois países diferentes em guerra eleitoral mútua. E essa guerra política não terminará com a derrota trumpista.
Demografia pode ser destino
A partir da experiência americana, os europeus também podem aprender que, na política, demografia geralmente é destino. Números definitivamente importam: quando eles mudam, o poder troca de mãos. A narrativa democrática há muito tem insistido que o que decide a vitória eleitoral é a mudança de mentalidade dos votantes. Contudo o poder também pode se inverter quando um eleitorado é alterado.
Isso ocorre quando uma nova geração com preferências coletivas fortes alcança a maioridade, como foi o caso das democracias ocidentais nas décadas de 1960 e 1970. Mas também pode acontecer quando um grupo considerável de novos eleitores passa a integrar o corpo político, reconfigurando-o.
Tal se deu em diversos países, ao ser introduzido o sufrágio universal, ou em consequência de migrações em grande escala. A mudança da composição demográfica em estados como Arizona ou Geórgia é o que ajuda a explicar o respeitável desempenho de Joe Biden, mais do que uma mudança nas mentes da população.
Assim, não surpreende que tantos partidos nativistas vejam o número crescente de imigrantes em seus países como uma ameaça não apenas econômica ou cultural, mas também política. As maiorias étnicas temerosas de se tornar minorias em seus próprios países permanecerão a mais poderosa fonte de apoio para os populistas nativistas dos EUA e da Europa.
Do ponto de vista institucional, o parlamentarismo europeu está mais bem posicionado para resistir à polarização política extrema, mas o exemplo polonês também mostra que não é necessariamente uma defesa confiável contra ela. As democracias europeias serão contaminadas pela polarização à moda americana, se não encontrarmos uma forma de mediar o abismo entre as áreas urbanas e rurais, entre os que tiveram educação universitária e os demais, e entre as preferências políticas de jovens e idosos.
Mundo pré-Trump já era
A experiência americana pode igualmente sugerir que uma nova geração progressista, cuja vasta maioria votou em Biden, possa estar pronta para quebrar o jugo populista que oprime a sociedade. Mas no tocante à promessa política da geração mais jovem, os europeus deve ser cautelosos em adotar o sonho americano inteiramente.
Na Europa, os que têm menos de 30 anos representam uma percentagem muito menor da população do que nos EUA. Um estudo recente do Centro pelo Futuro da Democracia da Universidade de Cambridge revelou que, por todo o planeta, as gerações jovens se mostram cada vez mais insatisfeitas com a democracia, não só em termos absolutos, mas também em relação a gerações anteriores em fases da vida comparáveis. E o fato de alguém ter votado em Biden não significa que seja imune aos encantos do majoritarismo populista, principalmente partindo da esquerda.
Ainda levará algum tempo até o próximo presidente americano ser oficialmente anunciado, e provavelmente será preciso esperar até meados de janeiro para saber quem vai dominar o Senado. Contudo, mesmo no cenário mais otimista, seria equivocado os europeus se fiarem nos americanos como vinham fazendo há décadas. O fato de haver novamente um democrata na Casa Branca não significa que o mundo pré-Trump tenha retornado.
Os europeus tinham bons motivos para crer que a destruição da União Europeia constasse da agenda de um segundo governo Trump. Agora que esse risco está aparentemente banido, será errado os europeus esperarem Biden nos dizer o que espera da Europa. É hora de o bloco ir até Washington e apresentar uma visão do futuro da parceria transatlântica, baseada nas novas realidades em ambos os lados do oceano.
Ivan Krastev é presidente do Centro de Estratégias Liberais em Sófia, Bulgária, e associado permanente do Instituto de Ciências Humanas de Viena (IWM). O presente texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente da DW.