O presidente Daniel Ortega chama ao diálogo? Essa é uma imagem difícil de se encontrar nos mais de 20 anos que o "comandante Daniel" tem governado a Nicarágua com mão de ferro.
E é realmente notícia. Pena que a imprensa independente nicaraguense só possa comentar seus efeitos, num contexto em que vários canais opositores foram censurados por transmitir a onda de manifestações que há dias sacode o país centro-americano. E por isso tampouco surpreende que ninguém acredite nesse diálogo, nem os de dentro, nem os de fora.
Os oposicionistas creem agora que a marcha a ré na reforma da previdência social anunciada por Ortega já não basta (a reforma fora o estopim dos protestos), enquanto as forças de choque do regime seguem aterrorizando-os pelas ruas, como se o presidente nada tivesse dito, num jogo perverso que resultou em cerca de 30 mortos, entre os quais um jornalista, como denunciam organizações de direitos humanos.
Embora uma interpretação mais plausível seria que Ortega, no ápice do descrédito, chama a pacificar o país enquanto, na realidade, acirra a repressão, num jogo duplo perverso e de consequências incertas. A questão não é – pelo menos por agora – que o país lhe tenha escapado das mãos, mas que ele está agravando a repressão a seu próprio povo, enquanto tenta parecer uma voz reflexiva que conclama a pacificar a Nicarágua.
Na realidade, os próprios sandinistas acenderam o pavio a pedido do governo, ao atacar grupos de manifestantes autoconvocados contra a draconiana reforma previdenciária do mandatário. Esta eleva as contribuições patronais e laborais, enquanto reduz em 5% as já raquíticas pensões do segundo país mais pobre da América Latina.
O que resta à oposição, em tal cenário? Desde que Ortega pôs funcionários do regime à frente dos partidos oposicionistas e se fez reeleger enfrentando adversários simbólicos, parece que só cabe aos oposicionistas darem vazão a seu descontentamento pelas ruas.
Embora, diante da repressão vigente, nem isso lhes reste. Os oposicionistas se refugiam em locais que até agora pareciam vedados à polícia, como sedes universitárias e igrejas. Mas esse governo sandinista não respeita nem isso, cada vez mais distanciado da revolução que derrubou a família Somoza, e cada vez mais parecido com essa família em seu desapiedado exercício do poder.
Não é sem motivo que Ortega controla o que se faz e desfaz no país, e quer controlar o que se diz, através da censura e de um sem-número de meios oficialistas a cargo de seus filhos e da vice-presidente e primeira-dama, Rosario Murillo.
Assim como as coisas estão, os estudantes foram atacados pela polícia em prédios universitários e até na catedral de Manágua, onde o cardeal da capital nicaraguense intercedeu por eles. Isso abriria espaço para a Igreja Católica tentar mediar e ajudar a corrigir, pelo menos parcialmente, o estrago provocado por anos de nepotismo e exercício de poder sem contrapesos, por parte da família Ortega.
Em outras palavras, nada indica que Ortega queira realmente dialogar nem retroceder na repressão e em sua polêmica reforma da previdência social. Ao contrário: tudo pode voltar para trás de novo, da noite para o dia, com um presidente que controla a Justiça e o Parlamento, assim como forças antimotim especializadas em eliminar dissidências nas ruas. E que, pior ainda, se reelege em eleições fraudulentas.
Mais uma vez, a comunidade internacional seria a única saída para uma oposição que sucumbe. Porém esta é uma esperança demasiado incerta, pelo que se vê na Venezuela, onde continuam práticas similares, apesar da condenação regional e das sanções aprovadas pelos Estados Unidos e a União Europeia.
E por falar em Venezuela, sua derrocada econômica está tendo impacto sobre a Nicarágua. A metade da energia que o país centro-americano consome é produzida a partir do petróleo da Venezuela, e esta elevou os juros cobrados de seu aliado em troca do combustível, num contexto de queda do preço internacional do petróleo e de hiperinflação. A isso se acrescente agora o impacto das sanções internacionais.
Ortega, por sua vez, multiplicou os subsídios às tarifas elétricas a partir de 2007. No entanto a bonança está chegando ao fim, e o regime da Nicarágua quer se preparar para uma fase como menos subsídios. Isso parece muito difícil de vender à população e, sobretudo, à família Ortega. É lógico: os cidadãos nicaraguenses não querem pagar a conta de anos de má administração e corrupção por parte de seus opressores.
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