Por mais que se tentasse, a utopia comunista não se tornava realidade, nem com boas palavras e promessas, nem com fuzilamentos em massa e Gulags. Em 1985, o Partido Comunista da União Soviética empreendeu mais uma tentativa para salvar seu império: na época relativamente jovem, Mikhail Gorbachev foi encarregado de recuperar o cada vez maior atraso em relação ao Ocidente.
Como todos os seus antecessores, ele fracassou. Porém seu fracasso não deu fim apenas à Guerra Fria: ao afrouxar as garras da violência que mantinham coeso o "Império Vermelho", ele devolveu a milhões de indivíduos sua liberdade e, com ela, a dignidade. Por fim, os diversos povos da União Soviética podiam voltar a ser russos, ucranianos, georgianos, armênios ou letões, gente com direitos civis, não mais proletários confrontados com prateleiras vazias e ao mesmo tempo fingindo que viviam no paraíso.
É trágico Mikhail Gorbachev ter morrido justamente agora. Bálticos, poloneses, tchecos, eslovacos, alemães-orientais ou romenos, depois de 1991 todos se mudaram para a – como ele formulou – "casa comum europeia". Só os seus próprios compatriotas não conseguem até hoje se decidir.
Um dinossauro político
Rússia, uma nação retardatária. Pior ainda: o atual chefe do Kremlin, Vladimir Putin, quer impedir que ucranianos e belarussos trilhem o caminho para a liberdade e a democracia. Ele quer voltar para o páthos, a utopia. Como no comunismo, o ser humano deve servir ao Estado, não vice-versa.
Assim como na ditadura vermelha, na Rússia de hoje toda discordância em público é perigosa; a mídia sob orientação estatal prega mentiras para os cidadãos. Assim como os membros do antigo politburo, Putin sofre da ideia fixa de que Moscou está cercado de inimigos. Como nos tempos de Leonid Brezhnev, uma casta dirigente se enriquece descaradamente às custas do público; corrupção e má gestão imperam.
Gorbachev abriu os arquivos para os russos verem com os próprios olhos quantos milhões deles Stalin e Lenin haviam mandado matar, sem qualquer motivo. Putin fecha os arquivos, censura livros de história, reintroduz o dogma da infalibilidade do Estado. Ele cultiva a mentira, se ela serve à educação patriótica das massas.
Gorbachev trouxe os soldados de volta da guerra perdida no Afeganistão. Putin os envia hoje numa assim chamada "operação militar especial" na Ucrânia, para lá combater um fascismo inexistente. O sucessor de Gorbachev no Kremlin é um dinossauro político, com ideias do século 19, alguém que combate pelo mundo afora para garantir "zonas de influência", por não dar conta de modernizar a economia e a infraestrutura do próprio país.
Ele não entende que hoje em dia um jovem russo, perante a escolha entre a grandeza nacional (o que quer que isso signifique) e o mais novo iPhone, se decidirá pelo último. A prova disso são as centenas de milhares de profissionais de boa formação que deixaram a Rússia desde o começo da guerra na Ucrânia.
Nem mesmo Tchaikovsky ou Dostoievsky
Certo, Gorbachev era um funcionário do partido, não entendia muito de economia. Nem mesmo a economia sob comando da supostamente tão adiantada República Democrática Alemã (RDA) era suscetível a reformas, como ficou demonstrado depois de 1990.
Possivelmente estaria condenado ao fracasso todo chefe do Kremlin que quisesse reformar a toque de caixa a economia planejada de Moscou. Os supostos êxitos econômicos de Putin, 20 anos atrás, se deveram exclusivamente aos altos preços das matérias primas. Ou existe algum produto que a Rússia tenha desenvolvido e produzido, para o qual haja demanda internacional – excetuadas as armas?
Gorbachev tem seu lugar nos livros de história garantido. Nenhum político da segunda metade do século 20 mudou tanto o mundo positivamente quanto ele. Milhões de indivíduos de todo mundo começaram a aprender o idioma russo por causa dele, esse político humano.
Putin, por sua vez, rebaixou o russo a língua dos bárbaros, dos párias, evitada até mesmo por grande parte dos ucranianos. Os promotores culturais do Ocidente hoje são obrigados a se justificar se apresentam um balé de Tchaikovsky, ou se pretendem organizar uma leitura de Dostoievsky. Então é melhor deixar para lá.
Sim, a vida de Mikhail Gorbachev foi, em parte, trágica, por demasiadas vezes ele fracassou. Mas sua ambição era mudar o mundo para melhor. Pelo menos tentar, ele tentou.
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Miodrag Soric é jornalista da DW. O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente da DW.