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ReligiãoIrã

Espírito de Khomeini paira no atentado a Salman Rushdie

Loay Mudhoon
21 de agosto de 2022

Tentativa de assassinato do autor de "Os versos satânicos" nos EUA confirma, de forma trágica, como é fatídica a instrumentalização política do islã, através de décadas e de fronteiras nacionais, opina Loay Mudhoon.

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Escritor Salman Rushdie, 15/11/2017, Nova York
"Khomeini quis utilizar as ondas de indignação pan-islâmicas contra 'Os versos satânicos' em seu combate ao "grande Satã", os EUA"Foto: Evan Agostini/Invision/AP

"Por esta informo aos muçulmanos devotos de todo o mundo que o autor do livro Os versos satânicos, juntamente com todos seus apoiadores, está condenado à morte. Conclamo todos os muçulmanos a matá-los, sem hesitação" – e quem morresse ao perpetrar tal atentado se tornava um mártir.

Em 14 de fevereiro de 1989 o aiatolá Khomeini, líder revolucionário e autoridade religiosa máxima da "República Islâmica do Irã", fundada por ele, pronunciava assim uma fatwa convocando ao assassinato de Salman Rushdie.

Agora, 33 anos depois desse questionável pronunciamento legal, o americano de origem libanesa Hadi Matar, de 24 anos, irrompeu no palco de um evento no estado de Nova York e esfaqueou repetidamente o escritor de fama mundial. Rushdie sobreviveu por sorte, apesar de gravemente ferido.

Islamismo politicamente instrumentalizado

Embora faça sentido querer responsabilizar diretamente a sentença de Khomeini por esse ato execrável, outras questões, mais importantes, se impõem: o agressor sequer conhece o contexto político dessa fatídica fatwa? Afinal, ele nasceu quase dez anos após a morte do revolucionário iraniano.

A ostensiva admiração de Hadi Matar por Khomeini não responde a essa pergunta. Tampouco se pode partir do princípio que ele – crescido numa típica família muçulmana americana, sem afinidades com o fundamentalismo religioso – fosse capaz de avaliar realisticamente a frágil posição dessa sentença controversa nos países islâmicos. Mas cada coisa a seu tempo.

Passados 33 anos desde a "fatwa de Khomeini", é fácil reconhecer que se trata de uma óbvia instrumentalização da fé muçulmana. O líder supremo iraniano se aproveitou da ira das massas islâmicas contra o romance Os versos satânicos, que supostamente ofendera o profeta Maomé, para se projetar como defensor do islã, sobretudo dentro do Irã xiita.

A estratégia política do aiatolá visava libertar do isolamento ideológico sua "Revolução Islâmica", de cunho xiita, para assim propagá-la como modelo para todo o mundo islâmico, também o sunita – obviamente tendo ele como "papa muçulmano"!

Além disso, Khomeini pretendeu utilizar as ondas de indignação pan-islâmicas contra Os versos satânicos em seu combate ao "grande Satã", os Estados Unidos, a fim de sedimentar sua raison d'état antiocidental.

Veneno fundamentalista que ignora fronteiras

É igualmente improvável que o agressor de Rushdie estivesse informado sobre o isolamento teológico e intelectual do autor da fatwa. Pouco após seu pronunciamento, numerosos Estados e eruditos islâmicos protestaram contra a pretensão de Khomeini de falar em nome de todos os muçulmanos.

Também do ponto de vista da sharia, a lei islâmica, a maior parte das autoridades religiosas rejeitou a fatwa, argumentando que no Alcorão não há qualquer base para imporem-se penas por blasfêmia ou ofensa ao Profeta.

Numa entrevista ao tabloide New York Post, o autor da tentativa de homicídio comentou que só lera algumas páginas de Os versos satânicos. Essa admissão lembra o pérfido atentado de motivação islamista contra o Nobel da Literatura egípcio Nagib Mahfouz.

Apunhalado diante da própria casa no Cairo, em outubro de 1994, ele só sobreviveu por um triz. Também aqui o criminoso confessou não conhecer nenhum livro de Mahfouz. Aparentemente ele se deixara influenciar por meios de fundamentalistas dos mais primitivos.

O que permanece é a constatação de que o veneno do islamismo radical segue agindo para além das fronteiras, até mesmo eliminando-as – sobretudo quando fatwas questionáveis legitimam o recurso à violência. Hadi Matar interpretou a ameaça de morte de décadas de Khomeini contra o autor britânico-indiano como seu dever individual e, fatidicamente, a colocou em prática. Em nosso mundo conectado em rede, infelizmente esse perigo permanece onipresente.

Nesse ínterim, o regime iraniano depositou a culpa do delito no próprio Salman Rushdie. Isso é infame, pois, afinal, todo este tempo Teerã sustentou a fatwa.. Paradoxalmente, a tentativa fracassada de atentado poderá ter um efeito político francamente negativo para os tomadores de decisão do Irã, comprometendo as negociações para um novo acordo nuclear e enfraquecendo a posição do país.

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Loay Mudhoon é jornalista da DW e dirige o portal Qantara.de, voltado ao diálogo com o mundo islâmico. O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente da DW.